“Não estamos só lendo livros. Estamos lendo a vida, lendo o mundo”
Na edição de outubro de 2021 do curso Transversalidades, Elen Ferreira – mulher, mãe, educadora e pesquisadora – nos convida a um debate sobre as distâncias entre as infâncias reais, encontradas no ambiente escolar, e aquelas retratadas em livros didáticos e paradidáticos. Diante da carência de discussões sobre o protagonismo de crianças e jovens negros e periféricos nas escolas e na literatura infantil, Elen destaca projetos e iniciativas que tentam suprir algumas demandas sociais que circundam este assunto.
Segundo a convidada, ainda durante a infância e a juventude, os corpos de indivíduos pretos são quase sempre preenchidos de saberes ancestrais invisibilizados socialmente. A falta de reconhecimento desses saberes, entretanto, respinga no contexto escolar, frequentemente distorcendo as ambições de crianças e jovens da nossa sociedade.
Desde muito cedo, então, vemos uma concepção elitista de futuro ser construída no imaginário das crianças das favelas, que passam a almejar outros valores e outros lugares, desgarrando-se de suas raízes e dos elementos sociais que organizam suas comunidades. Como resultado disso, Elen destaca uma sensação cada vez mais comum entre as crianças, ligada à falta de pertencimento, e alerta que o mesmo incômodo pode se estender para a vida adulta, gerando fissuras emocionais e dificuldades de autoconhecimento.
“É cultural no nosso país o abuso desses corpos marginalizados”
Conduzindo nossa atenção a partir de suas memórias, Elen Ferreira compartilha experiências da própria infância, apresentando algumas de suas primeiras preocupações relacionadas a contextos de ensino e partilha de conhecimento. Com apenas nove anos, observava a evasão de colegas de turma em decorrência de responsabilidades familiares adquiridas. Naquele contexto, era bastante comum que suas amigas de infância, vizinhas e colegas de classe largassem os estudos para cuidar dos irmãos mais novos e da casa, enquanto seus pais – ou suas mães-solo – trabalhavam durante o dia todo.
Ainda que muito próxima a essas histórias, Elen estava inserida num contexto familiar que lhe permitia permanecer na escola. Foi então que pediu ajuda ao pai, que puxou um ponto de luz na laje de casa, e assim nasceu a escolinha onde, por iniciativa própria, ela promovia o compartilhamento dos conteúdos acessados na sala de aula. Naquele espaço, relembra a convidada, cabia muita diversão – “talvez até mais do que conteúdo pedagógico”. Ali ela firmava encontros com amigos que já não via tanto na escola, tornando a laje de casa um ambiente onde brincar e estudar não eram coisas distintas.
Não por acaso, o contexto das favelas cariocas – sobretudo o Morro da Providência, onde Elen nasceu e foi criada – tornou-se um objeto relevante dentro de suas pesquisas. Marcantes em sua trajetória, as múltiplas vivências em espaços periféricos hoje direcionam seu olhar e sua atuação, voltados ao incentivo de noções de pertencimento por meio da educação e do afeto.
“As crianças quando desenham a Providência, não desenham o Morro, desenham a vista [Zona Sul]”
Após um salto no tempo, Elen se vê hoje em dia diante das filhas Helena e Eduarda. Duas meninas que, assim como ela, se interessam logo cedo por incentivar outras crianças a partir da prática de leitura. Com orientação de Elen, nasce o projeto das filhas, Pretinhas Leitoras. O incentivo pedagógico e materno presente no projeto nos permite observar a essência da educadora, desde muito jovem incomodada com as realidades que a cercavam no Morro da Providência – mas não só isso.
Apesar de parecer circunscrita ao território da Pequena África e do Morro da Providência, tanto a Elen educadora quanto o Projeto Pretinhas Leitoras são dois agentes que se ramificam, multiplicando em diferentes espaços a visibilidade de suas práticas. Inserida também no ambiente acadêmico, Elen utiliza a universidade como ponto de articulação para pensar outros territórios periféricos do Rio de Janeiro. Como professora, por outro lado, a convidada alcança estudantes dos anos iniciais da educação básica da cidade, formando e orientando os pequenos novos olhares.
“A educação infantil, primária, mesmo dentro da favela ensina a desejar o estrangeiro, a sair da favela, a não admirar a própria aparência, a ocupar aquele lugar…”
Idealizado ainda em 2015, o projeto Pretinhas Leitoras tem um livro publicado, “Fa vê-las”, além de atuar em palestras e nas redes sociais. Dentre os milhares de seguidores, reconhece Elen, a maioria é formada por adultos. Não por acaso, são também pessoas pretas, que geralmente se conectam ao projeto por conta da ausência desse tipo de movimento em suas infâncias e buscam reproduzir, seja em suas famílias ou em suas práticas profissionais, a sensibilização à leitura promovida por Elen e suas filhas.
O objetivo do projeto, inicialmente, pode até parecer bastante simples: estimular o contato do público com literaturas selecionadas de autores, autoras e ainda personagens negros. Para a convidada, entretanto, ao projeto não interessa somente o que se lê e se acumula intelectualmente, mas também o que se sente, de que modo o público se afeta e o que é possível fazer ao sentir as dores do outro. Trata-se, em suma, de um projeto que se importa com o futuro, usando o presente como ferramenta de luta.
No encerramento do encontro, Elen nos lembra que o amor, no campo da educação, costuma ser sempre muito contestado e ter relevância somente como substantivo abstrato. Para ela, o amor é um método de resistência do povo preto e favelado, e foi isso o que lhe garantiu a sobrevivência e a capacidade de transformar em potência de vida a própria existência. E aos olhos e ouvidos de quem acompanha sua fala, certamente, esse mesmo amor se faz presente em toda sua prática, desde os nove anos de idade até os dias atuais.