No mês de abril de 2021, o Múltiplo Ancestral recebeu os músicos Camilo Gan e Johnny Herno com seu trabalho Per-Concertos: Concerto para Monumentos e outros Biomas Urbanos, uma performance musical, dançante e um tanto instigante. Per-concertos se propõe a traduzir de forma poética as notas e os sons escondidos nos percursos que traçamos pela cidade, considerando sua vida e seus monumentos, homenageando seu marcos de surgimento e referenciando a cultura dos povos originários e a tradição negra marcada nesses territórios.
Na performance registrada em vídeo, Gan e Herno nos convidam a ocupar espaços do prédio do Centro Cultural Banco do Brasil Belo Horizonte, localizado na Praça da Liberdade. Essa ocupação, contudo, se dá de forma sensorial, usando os movimentos do corpo e a musicalidade que encontram nesse espaço. Trata-se de ritmos que muitas vezes conseguimos identificar como característicos de nossa cultura, mas que por vezes nos levam para caminhos não previsíveis, devido à espontaneidade de sua produção.
Per-concertos traz principalmente a percussão, elemento musical essencialmente presente em diversas tradições brasileiras, como é o caso dos batuques, dos festejos e de rituais religiosos. Diferente do que acontece com outros instrumentos, os aparatos de percussão se popularizaram por serem mais acessíveis às populações menos favorecidas, e também por suas práticas poderem ser executadas de modo improvisado, já que o principal elemento da ação está no corpo: as mãos – e que essas mãos podem agir sobre diferentes superfícies. Essa presença se torna ainda maior quando os primeiros cursos superiores de percussão são implementados no Brasil, no fim dos anos 1970, e com o surgimento dos blocos de carnaval trazendo um novo tom a essa sonoridade.
O som de cada corpo, o som de cada espaço
A experiência sonora proposta por Camilo Gan e Johnny Herno vai além de instrumentos convencionais. Em suas práticas, os aparatos musicais são em sua maioria inventados ou personalizados pelos artistas, frequentemente a partir do uso de objetos do cotidiano – como é o caso da “berimlata”, por exemplo.
A musicalidade se faz presente também nos elementos arquitetônicos de cada edifício e em objetos comuns. A esse respeito, os artistas exploram sons produzidos a partir do movimento de portas, do vidro do aquário, dos degraus da escada, da acústica de cada cômodo e até mesmo de ruídos imaginários sugeridos pelos vitrais decorados do edifício. Gan e Herno também exploram a dança e o movimento do corpo, ao se deslocarem e ocuparem os espaços, ressignificando-os. Como deve se portar um corpo dentro de um centro cultural? E que sons se espera desses espaços?
Alguns mitos de origem brasileira contam que, tristes com o silêncio do mundo dos humanos, os deuses nos deram como presente a música. Em outros mitos, ligados a culturas africanas e também outras, defendem que deuses e deusas criaram os instrumentos juntamente com esse mundo. Diante dessas visões, parece difícil desassociar música, espiritualidade e relações de ancestralidade. A música não está somente na natureza e na materialidade, mas também é uma consequência do movimento do corpo. O corpo também medeia o som, como podemos ver no trabalho apresentado pelos convidados.
A música falada, assim como a repetição de palavras e frases, podem nos remeter a um mantra, constituindo-se como parte de toda a ritualística simbolizada pela performance. Se nós tendemos a criar imagens e materializar, a partir delas, estímulos que vêm de um campo espiritual, Per-concertos vem para fazer o contrário: resgatar o espírito das construções urbanas, em certo sentido reavivando a cidade a partir da transformação da matéria em memória, música e movimento. Camilo Gan e Johnny Herno nos convidam a um processo de apropriação dos nossos percursos ancestrais, quem sabe para não nos esquecermos daquilo que é nosso. Para nos lembrarmos de que pertencemos a esses lugares, assim como eles nos pertencem.