Nesta edição do Transversalidades, fomos convidados a imergir no mundo da literatura de língua portuguesa a partir do contato com autores pouco difundidos em território brasileiro. Tais autores, entretanto, acabam por falar não somente da nossa língua, mas também das narrativas dos povos que a utilizam, que dela se apropriam e a subvertem. Durante o encontro, fomos apresentados ao que comumente se identifica como literatura marginal, neste caso produzida por três autores que deslocam o nosso olhar para a escrita que surge do “caminhar de corpo a corpo com a vida” – como diz o convidado Flávio de Castro.
Conduzidos por Flávio, percorremos algumas narrativas do brasileiro João Antônio (1937-1996), do português Luiz Pacheco (1925-2008) e do angolano Luandino Vieira (1935) – e cada texto nos entrega breves contextualizações sobre as relações sociais, estruturais e culturais dos territórios onde vivem esses autores: São Paulo, Lisboa e Luanda.
Pautados na representação das classes populares e no espaço urbano que retroalimenta essas narrativas, os textos escolhidos e investigados durante o encontro nos convidam a entender e a refletir sobre um dos muitos paradoxos que diz respeito à presença das classes populares na literatura brasileira: apesar de constituírem, historicamente, um tema fundamental dentro da nossa produção literária, as narrativas que tratam das classes populares partem muitas vezes de um olhar etnográfico, vindo “de fora”.
Insumos para uma literatura marginal
Como se dá a representação das classes populares na Lusofonia? O que isso tem a ver com nossos corpos, nossas culturas e com os tempos atuais?
Segundo o convidado, é possível perceber na atualidade a importância e a urgência de uma literatura feita e pensada rente ao chão, no “corpo a corpo com a vida”, representando-a “de dentro”. Nos dias de hoje, ganha cada vez mais relevância a produção literária que olha para o Brasil e se reencontra com o país em todas as suas extensões, incluindo em seu universo uma série de corpos marginalizados, afastados e excluídos das estruturas sociais dominantes.
A literatura marginal, portanto, se constitui para além dos corpos e espaços acadêmicos: ela nasce a partir de um corpo transeunte e residente nas ruas, que anda pelos espaços e lida diretamente com o povo, com suas inquietações e demandas, sejam movidas pela pobreza, pelo preconceito ou pela retaliação policial.
O marginal, segundo alguns textos trazidos por Flávio, é aquele que está fora do cânone, do circuito e da divulgação, que está fora das tendências e da estrutura literária produzida por um grupo seleto de senhores da literatura – em sua maioria, homens brancos. Um dos autores evocados no decorrer da ação, o português Luiz Pacheco (1925-2008), afirma que ser marginal não é para quem quer: não é usando trajes exóticos que se chega à marginalidade, mas a partir da atitude daquele que não vende nem a si e nem a sua escrita.
Nos últimos anos, por conta de uma revisão histórica e da busca de novos pontos de vista para além dos hegemônicos, alguns escritores marginais foram redescobertos, como é o caso do brasileiro Lima Barreto (1881-1922). Escritor e jornalista, Lima enfrentou o alcoolismo e foi internado duas vezes em um hospital psiquiátrico, local onde escreveu duas de suas produções mais famosas: “Diário do Hospício” e “Cemitério dos Vivos”.
Nessas obras, o escritor reflete sobre as construções excludentes da sociedade daquele período, assim como discute os conceitos de loucura e normalidade, documentando as formas desumanas como as pessoas eram vistas e tratadas naqueles espaços. Ao longo de sua produção, Lima Barreto atuou na denúncia da desigualdade social e do racismo, combatendo uma tradição literária que visa somente representar e atingir as elites.
Unidos pela margem
Ao comparar a literatura do brasileiro João Antônio, do português Luiz Pacheco e do angolano Luandino Vieira, o que podemos encontrar?
Em primeiro momento, o que parece ser apenas uma semelhança de idiomas acaba por demonstrar narrativas que se tangenciam. Mesmo com o uso de recursos de linguagem distintos, é notória a gênese criadora que unifica as narrativas criadas pelos três escritores, frequentemente partindo da pobreza, da oralidade, da fome e de um sistema de opressão colonial que culmina no apagamento físico e histórico de muitos sujeitos.
Na obra de Luandino Vieira, por exemplo, a reflexão sobre o colonialismo e o legado problemático do Salazarismo se dá por uma subversão da norma de escrita e pelo uso de uma linguagem que mistura português e expressões em kimbundu, recorrendo a recursos da oralidade e da velha sabedoria ancestral. No trabalho de Luiz Pacheco, por outro lado, as formas de escrita se baseam em um astuto jogo de palavras, que bebe da libertinagem e da pornografia para pintar o cenário miserável vivido por seus personagens, imersos em desejos carnais e estruturas sociais de poder.
Na produção de João Antônio, a literatura se apropria do jogo de bilhar como metáfora da vida, retratando um cotidiano feito de apostas, perdas e ganhos. Nos territórios atravessados por seus personagens, existe uma ética própria e um sistema de valores e condutas bastante singular, que certamente não se aplica a todos os corpos e espaços. Mesmo a partir de um breve contato com o trabalho de João, sua obra nos leva a entender a urgência de olhar para nós e para nossos movimentos.
Em uma breve análise conjunta das narrativas apresentadas pelos três autores, percebemos que eles estão criando um cenário para as “grandes histórias das gentes miúdas” – como defende o próprio Luiz Pacheco.
Literatura em campo expandido
Durante o encontro, ao menos duas provocações ecoaram fortemente: a importância de se ler uma língua estrangeira que se domina, mostrando a amplitude de culturas de um mesmo idioma; e o papel da educação de nível médio para a disseminação da grandeza de nosso patrimônio linguístico e literário.
Apesar de estarmos rotineiramente vivenciando o português e a cultura brasileira, é com a abertura de nossos horizontes literários para países e culturas do mesmo idioma – como Angola, Moçambique, Cabo Verde, Guiné-Bissau, São Tomé e Príncipe e Portugal – que podemos ter contato mais rápido e fácil com narrativas estrangeiras que nos apresentam outros modos de ser e estar no mundo.
Em meio a isso, a educação literária, principalmente a de nível médio, tem como potencial tornar-se uma grande fomentadora dessa cartografia cultural lusófona, que atualmente impulsiona diferentes autores de língua portuguesa, como o brasileiro Eça de Queirós (1845-1900), o angolano Pepetela (1941) e José Eduardo Agualusa (1960) e o moçambicano Mia Couto (1955). Com isso, colocamos em vista a ampliação do ideal de patrimônio, de modo a mostrar de forma mais nítida parte importante de nossas raízes, apresentando semelhanças, contrastes e particularidades de nossa cultura em comparação às de outros países lusófonos.