Você já parou no meio da correria do dia a dia e experimentou se perceber na cidade? Perceber o ritmo que o seu corpo segue, o ritmo a que a cidade te conduz? Você, em algum momento, se contrapôs ao ritmo da cidade? Parou, respirou e deixou seu corpo dizer como queria existir ali, naquele momento?
O ritmo acelerado que a cidade de São Paulo nos impõe muitas vezes dá a sensação de estarmos correndo a toda hora. O excesso de ofertas e estímulos externos frequentemente nos priva de poder performar o que somos e o que queremos ser, e até mesmo de imaginar em que momento isso se dará. Como os corpos reagem ao que é imposto? Como romper com essas imposições?
Na edição de novembro de 2019 do curso Múltiplo Ancestral, o CCBB SP recebeu a educadora e artista Carolina Velasquez, que provocou o público a experimentar a cidade num ritmo diferente e incomum. Intitulada “Performances Fabulosas”, a atividade desde o começo tomou um ritmo distinto daquele que a cidade nos impõe. Ao longo do encontro, fomos convidados a nos aproximarmos uns dos outros, nos voltarmos aos próprios pensamentos e, naquele espaço, aterrar. Lembrar, então, de que nosso corpo é terra e assim nos sentirmos, mais uma vez, pertencendo ao todo.
Mestranda em Performances Coletivas e Proposições Artísticas pela Unesp, a artista tem sua pesquisa voltada à prática corporal e à memória. Tanto no desenvolvimento de sua pesquisa quanto na proposta apresentada, foi possível perceber que também a cidade e tudo que circula os corpos são temas presentes entre seus interesses. A ela, interessa despertar corpos que funcionem coletivamente, mas também em sua individualidade.
Cada ser humano é um artista
A atividade proposta por Carolina se dividiu em dois momentos, sendo iniciada a partir de uma conversa com o público presente. Nessa etapa, já foi possível perceber que nossos corpos seriam conduzidos a um lugar de mais calma, tão diferentes quanto indiferentes ao que estava acontecendo lá fora.
A artista começou sua apresentação trazendo pontos interessantes de sua vida e pesquisa, ao mesmo passo que deixava o público a vontade para participar, interagir e se colocar também. No ritmo de sua apresentação, as demais seguiram, gerando uma sensação de respiro que tomou o espaço e deu o tom para que pudéssemos, pouco a pouco, em coletivo, reconhecer novamente quem somos e de onde viemos.
Desde o primeiro momento, portanto, já havia um desejo de integrar o público à ação e iniciá-lo como parte da performance. Sucessivamente, todos e todas fizeram suas contribuições ao compartilharem múltiplas falas, impressões e modos de se apresentar. Interagir, ali, era se reconhecer como parte do todo.
Em sua apresentação, Carolina trouxe como referência um trabalho do artista alemão Joseph Beuys (1921-1986), que a partir de uma experiência de quase morte desdobra parte importante de sua pesquisa artística. Integrante da Força Aérea Alemã durante a Segunda Guerra Mundial, Beuys teve seu trabalho marcado pelo encontro com um grupo de tártaros que cuidaram dele quando estava com ferimentos e lesões, correndo sério risco de morte após a queda do avião em que viajava.
Assim como na vida de Beuys, a ideia de encontro também é algo vivo na pesquisa de Carolina. O trabalho da artista acontece justamente a partir de situações de encontro, considerando a potência que um ser ganha ao entrar em contato com outro ser, aos seres e fazeres coletivos, a partir de estratégias que transformam o público em participante da obra.
O todo e as partes
A artista e educadora trouxe ainda ao público um possível significado para a palavra performar: algo como uma “ação semelhante à brincadeira” ou ainda “estar em estado de suspensão”. Nesse contexto, Carolina já começava a introduzir a atmosfera da segunda parte da atividade: uma grande performance coletiva em que os corpos seriam livres para existirem, coexistirem e serem o que sentissem que deveriam ser.
Seguindo as orientações da artista, esse “existir com o todo” se guiou por memórias individuais e coletivas que vieram à tona no decorrer da atividade. Entre as propostas trazidas por ela, figuravam a ideia de deixar a memória vir pelo corpo, assim como buscar estados de suspensão e aterramento, deixando-se existir individualmente e, ao mesmo tempo, retornar à terra que existe em nós.
Carolina também apresentou ao público a pequena escultura de um puma, animal que na cosmovisão Inca representa “a terra do meio” ou “o mundo dos vivos”. A partir dessa representação, Carolina falou novamente sobre a noção de pertencimento à terra, nos convidando a perceber que muitas de nossas ações são pautadas por questões que vão além de nossas escolhas. São essas as ações inconscientes que trazem a tona as questões de nossa ancestralidade.
Conforme ressalta a artista, voltar para a terra que existe em nós significa também se reconhecer nas próprias ancestralidades. O corpo pertence e se faz presente nessa terra; a partir disso, atinge outras camadas da memória. Sentir-se tocado pela própria ancestralidade pode ser, então, um caminho para se sentir pertencente ao todo.
Performances Fabulosas
A segunda parte da atividade se dividiu entre o saguão do prédio e a área externa do CCBB SP. Ainda no saguão, o público foi convidado a deixar aquilo que carregava e, a partir daquele momento, se permitir ser carregado por algo maior. Ali, Carolina nos apresentou aos Fabulosos: personificações de memórias e ancestralidades por vezes apagadas, mas ainda presentes nos corpos, entregues pelos participantes a partir daquilo que decidiram performar. A esses encontros, a artista atribui o nome de Performances Fabulosas.
Ao longo do processo, cada corpo se transforma a partir das memórias do outro e também de suas próprias memórias. Cada corpo se adequa, portanto, aos novos corpos que a ele se somam, e o que acontece nesse encontro é o que cada um se permite. Para tanto, um tecido cobria cada corpo pela cabeça, sendo responsável por estimular o contato com outros mundos. Um outro tecido, com as cores da Pachamama, cobria todos os corpos e fazia com que eles formassem, novamente, um corpo coletivo.
Ainda cobertos pelos tecidos e sentindo o ritmo dos nossos corpos, Carolina e os Fabulosos nos banharam com sementes de Pachamama. Como parte desse mesmo ritual, ganhamos de presente um punhado de sementes e fomos orientados a enterrá-las, quando chegássemos em casa, tendo em mente um agradecimento para cada semente.
No momento final, saímos do CCBB SP e fomos, todos juntos, para a rua, ainda sob o tecido que nos protegia da metrópole. No cruzamento entre as ruas da Quitanda e Álvares Penteado, em pleno hipercentro de São Paulo, essa ruptura nos possibilitou uma subversão ao que nos estava imposto. Dançar, movimentar-se, relacionar-se livremente com o espaço, o tempo, os outros e as outras. Voltar a ser quem somos para, assim, conseguirmos performar a potência do que podemos ser. Partindo dessa perspectiva muito particular, a ação proposta pela artista nos convidou a experimentar uma potência que é revelada no todo – porém a partir do reconhecimento do um.