O Programa CCBB Educativo – Arte & Educação realizou em fevereiro de 2021 um encontro virtual do curso Transversalidades, destacando o tema Tradução e Educação em Perspectivas. Conduzido pelo educador e pesquisador Thiago Consiglio, o curso tratou de analisar teoricamente algumas possibilidades de tradução no âmbito educativo a partir das investigações realizadas por Tiago em sua dissertação de mestrado “O procedimento de tradução como fundamento da educação nos museus de arte”.
O que traduzir? Quem traduz? Quando traduzir? Como se traduz? Onde traduzir? Por que traduzir? Essas perguntas elementares abriram as conversas com o público, que participou com reflexões sobre as traduções entre culturas, as responsabilidades de um museu, o estabelecimento de diálogos e as possíveis fronteiras entre o saber e o não saber, dentre muitas outras questões. Afinal, como educadores, somos responsáveis por traduções em nosso cotidiano? Como elas se dão? Como podemos distinguir ou mesmo identificar as traduções que realizamos? Thiago Consiglio afirmou que traduzimos tanto quanto educamos, e por isso a tradução se dá como um procedimento fundamental ao fazer educativo.
Com sua pesquisa, Consiglio propôs uma pausa reflexiva dedicada à compreensão teórica dos procedimentos de tradução vivenciados por ele em museus de arte, considerando ampliação dos mesmos procedimentos também a outros contextos pedagógicos. Ao relacionar-se com pensadores como Susana Kampff, Jorge Menna Barreto, Walter Benjamin, Paulo Freire, Jacques Ranciére, Slavoj Zizek, David Harvey, Zygmunt Bauman, Nicolau Sevcenko e Boaventura de Souza Santos, o pesquisador construiu uma tradução de suas ideias para relacioná-las à complexidade das práticas de educação museal.
Ao longo do encontro, se dedicou a apresentar relações entre esses autores, organizando em três âmbitos a atividade de tradução: enquanto procedimento literário, procedimento educativo e procedimento epistemológico. Ao final, questionou como a linguagem pode alcançar uma competência plural e processual, apontando suas correlações com a história da educação museal.
Como espectadora do encontro, tentei capturar o que tocava a minha experiência prática como mediadora cultural em museus, trabalhando em exposições temporárias de artes e observando diariamente o trabalho de educadores. Inspirada nas ideias trazidas por Consiglio, apresento aqui uma desleitura constituída como tradução deste curso, concretizada em um texto novo e despretensioso, como uma contextualização das teorias apresentadas por Tiago nas práticas educativas vivenciadas por mim.
Desleitura é uma obra do artista Jorge Menna Barreto que mistura termos distintos impressos em capachos de borracha. A obra pode ser praticada como uma ação artístico-educativa, uma provocação que se distancia de um discurso esclarecedor. Inspirado nessa obra, o termo aqui é utilizado como um procedimento discursivo.
Nesse sentido, poderia haver aqui um quiz com situações baseadas em fatos reais que pudessem nos apontar com qual – ou quais – desses perfis nos aproximamos. Mesmo sem esse questionário, no entanto, convido possíveis leitoras e leitores a refletirem sobre suas próprias experiências cotidianas e a buscarem, dentre as traduções a seguir apresentadas, possíveis aproximações ou discordâncias.
Tradução enquanto procedimento literário
A cada nova exposição, os educadores têm acesso a uma infinidade de discursos: textos curatoriais, biografias de artistas, falas de artistas e textos críticos sobre as obras, além de toda a literatura relacionada à história da arte e aos contextos históricos e filosóficos que envolvem cada conjunto de trabalhos. A curadoria, bem como as instituições que a legitimam, frequentemente impõe ao público sua própria leitura sobre as obras expostas, representada por textos de apresentação e pela composição de núcleos temáticos, por fim reunidos em um documento impresso, o catálogo. Todos esses conteúdos são ainda associados à trajetória formativa e às investigações individuais, que servem como subsídio para que cada educador e educadora possa realizar, de distintas maneiras, suas próprias traduções.
O mediador melancólico: é aquele que se vê subjugado às imposições de saberes legitimados e cobrado por dominar todas perspectivas institucionalmente postas: a do curador, da instituição, da crítica, da história etc. Ele se sente incompleto e neutro, renunciando à própria capacidade de produzir pensamento e também aos procedimentos da linguagem. Ao mediar, simplesmente reproduz os conteúdos que acessou, repassando as informações assim como chegaram a ele, impedido de reconhecer suas próprias ideias diante das ideias com as quais se relaciona e por vezes também de tomar consciência sobre os seus modos de traduzir. Muitas vezes, as condições de trabalho, bem como as exigências institucionais, impõem ao educador esse estado melancólico, que pode ser temporário ou permanente.
O mediador transcriador: esse mediador está preocupado, sobretudo, com os procedimentos da linguagem. Ele se apropria de todos os conteúdos a que teve acesso para reescrever, subverter e transcriar, dando a ver os procedimentos e processos próprios da tradução. Ao mediar, realiza leituras poéticas dos discursos da mostra, dando vida a novas leituras e experiências junto aos demais espectadores. Sua leitura pode ser compreendida como uma desleitura, e pode ocorrer de não ser muito bem aceita pela instituição, devido à sua tendência a autonomia e liberdade. Em geral, esses educadores têm maior compreensão sobre os próprios modos de traduzir e se utilizam de procedimentos linguísticos como processos artísticos, transitando pelos limites entre o fazer educativo e o fazer artístico. Por vezes, pode ocorrer de sua criação ultrapassar os limites da mostra e abandoná-la completamente, eventualmente prejudicando o seu trabalho.
O mediador contra-hegemônico: assim como Walter Benjamin, esse mediador deseja “escovar a história a contrapelo”. Disposto a desvelar toda a hegemonia imposta nos discursos curatoriais e institucionais, se mune dos discursos das minorias, da contracultura, dos saberes populares, das vozes das margens e do povo. Contesta, desse modo, a voz dominante, defendendo um museu e uma educação decolonial. Preocupa-se, por conta disso, com o uso de uma linguagem capaz de abrigar uma ampla diversidade de saberes e vozes, mas em alguns momentos pode exceder-se e tentar impor sua tradução contra-hegemônica.
O mediador leitor de mundos: está preocupado em colocar-se no mesmo ponto de partida dos demais espectadores. Entende que, antes da leitura das obras, é preciso ler o mundo – e é a partir dessa perspectiva que, em condição de igualdade com o público, constrói suas observações e vivências em uma exposição. Acredita que conhecimento se dá pela leitura crítica, e por isso se esforça para garantir a liberdade do público em traçar sua própria trajetória na exposição e na descoberta dos elementos que a compõem, relacionando textos e contextos. Pelo caráter investigativo e livre de suas práticas, frequentemente exige mais tempo do que o disponível para a visitação, deixando o educador sempre atrasado.
Tradução enquanto procedimento educativo
Os educadores lidam com proposições pedagógicas institucionais muito diversas, traduzindo à própria maneira os modos de fazer educação dentro de uma exposição de arte.
O mediador da experiência: esse educador está preocupado em construir experiências significativas. Para tanto, planeja-se com cuidado, tentando se organizar sobre o que será ensinado. Ao mesmo tempo, preocupa-se em não deixar que o planejamento enrijeça a experiência, deixando abertura suficiente para que o indeterminado se manifeste. O mediador entende ainda que essa experiência não pode ser apenas mental: deve ser vivida com o corpo todo, ativado por dinâmicas e atividades em ateliê. Esse educador tem sempre em mãos um objeto ativador, uma pergunta disparadora ou ainda um livro cuja leitura pode iniciar uma discussão. Como a experiência da visita a uma exposição é compreendida de modo ampliado, considerando desde o momento em que o público sai de casa até seu retorno, esse educador pode dar menos atenção à exposição do que se espera, eventualmente passando quase metade da visita no saguão do museu.
O mediador do acontecimento: este, por sua vez, acredita nas interferências. Entende que, quando reenquadramos a realidade a partir de um acontecimento, podemos mudar nossa percepção em relação ao mundo. Gosta de tirar as pessoas de seu lugar comum, com provocações e questionamentos. Observa atentamente os gestos e as falas do público diante das obras, e estimula que cada visitante, a partir de sua própria curiosidade, estabeleça relações entre as obras e o mundo. Sempre que propõe algo, acolhe em sua potência o que eventualmente “dá errado” e reivindica, durante as visitas, a participação de todos. Pode, por conta disso, se frustrar quando nada acontece ou quando o público não corresponde às suas investidas.
O mediador artesão: está sempre preocupado em aprimorar seu próprio fazer educativo. Aprende muito observando os colegas, repete, verifica, cria associações e as ressignifica. Observa os gestos de outros educadores e refaz suas próprias práticas a partir do que aprendeu. Registra e revisa suas produções, compartilha seus resultados e gosta de ouvir retornos. De igual modo, elabora seus discursos e gestos conforme os pratica. Corre o risco de ter uma percepção distorcida sobre as próprias competências, visto que se sente sempre em processo de aprendizado.
Tradução enquanto procedimento epistemológico
Os educadores que se dedicam à mediação cultural e ao campo das artes há mais tempo começam a se tornar pesquisadores dos procedimentos de tradução que realizam, bem como das metodologias relacionadas à aprendizagem e ao conhecimento gerados a partir da experiência em museus e exposições de arte.
O mediador pós-moderno: esse educador vive a consciência do declínio da ilusão modernista que pressupõe a destruição do velho para a construção do novo. Está preocupado com uma perda generalizada da confiança na ciência moderna e nas referências tradicionalmente estabelecidas. Vive a fragmentação, a indeterminação e a desconfiança em relação aos discursos universais. Atua escavando vestígios do passado e colocando-os ao lado das coisas do presente, experimentando junto com o público a ficcionalização da realidade. Tem dificuldades em lidar com os discursos determinantes da arte educação e, por isso, se esforça para dialogar com diversos âmbitos da educação e da cultura ao pensar suas práticas no museu. Também vive os conflitos sobre os impactos da mercantilização da educação e da precarização da sua forma de trabalho em museus e centros culturais sobre os processos educativos que estão sendo produzidos e consumidos.
O mediador pluralista: o educador pluralista recusa-se veementemente a assumir uma posição única e, para tanto, media as tradições com questionamentos, sem assumir uma ou outra como verdadeira. Entende que não existe apenas uma ciência e que todas as metodologias têm seus limites por uma perspectiva humanista. Por ser pluralista, se esforça para comparar os conceitos e ideias à disposição em uma exposição, articulando saberes. Ao se relacionar com o público, assume posições temporárias que lhe permitem dizer a partir de diferentes perspectivas, bem como convidar o público a experimentá-las. Compreende, por fim, o próprio movimento da tradução como caminho para dar sentido à complexidade da realidade
Criadas a partir do encontro com a pesquisa de Thiago Consiglio, as tipologias inventadas por mim estão certamente sujeitas à limitação da minha própria experiência ao imaginar posições temporárias que assumimos cotidianamente – e não posições fixas, como se poderia imaginar. Aos que desejarem refazer o percurso dessa sequência de traduções, convido a retomar as palavras do nosso convidado no registro em vídeo do encontro e em sua dissertação de mestrado – ou ainda a acessar os autores enumerados no início desta reflexão.