“não à toa, aqueles que invocam as palavras de força no cair da noite ritualizam a vida e seus ciclos com cantos, danças, plantio, colheita e festa para permanecer criança, virar bicho, vibrar folha e desaguar na maré dos tempos”
(Luis Rufino)
Este texto parte de um convite da equipe do Ja.Ca a escrever para uma espécie de biblioteca de referência para educadores, pesquisadores e artistas que vem sendo formada. Como todo convite ou proposição feita por alguém especial — como é o caso das pessoas que compõem o Ja.Ca —, este é aceito sem muito pensar, afinal, não deixa de ser uma oportunidade de estar junto com alguém de quem se gosta muito. Assim, aceitei, ainda sem pensar no que seria. De início, me dei conta de que meu corpo se movimentava para refletir com este texto a partir das inquietações que vinha tendo no momento, ou seja, uma espécie de documento localizado num tempo e no espaço desse processo, desse fluxo desordenado que é pensar com arte — já que acredito que aquilo que o artista faz através de sua produção é compartilhar publicamente um interesse e uma pesquisa com aquilo que materializa daquilo que se quer aprender. Então, partirei deste lugar onde é possível pensar em voz alta sobre algo inconcluso e tão pouco definido que enseja, portanto, não definições ou certezas, mas um movimento de habitar o incerto e se aventurar no processo da produção partilhada de conhecimento.
Eu, um homem, branco, cisgênero, oriundo de uma classe baixa e da periferia, tive acesso a diversos saberes antes de entrar na universidade, como aqueles produzidos nos quintais, nas calçadas, nas ruas, em oficinas e em ambientes não institucionalizados. Por exemplo, fui a muitos encontros de samba lenço, batalhas de hip hop, cantadas de cururu caipira, campeonatos de futebol que aconteciam nas ruas, em centros comunitários para festas e trabalhos diversos em ONGs. Por outro lado, fui pela primeira vez a um museu só aos 20 anos, no primeiro ano do curso de artes. São saberes do território tidos como populares e, portanto, ainda hoje deslegitimados no contexto acadêmico; ignorados no âmbito disciplinar da história da arte. Para mim, na história da arte, o mais desafiador se apresentava como “arte conceitual”, na qual a síntese e a exatidão de algo chamado obra se faziam em um processo longo, denso e que produzia um amálgama único. Aceitei essa perspectiva ensinada sem muito saber que havia outras opções e a tomei como meu desafio naquela época da vida e, assim, na produção artística, o que — para usar a metáfora colonial — norteou meus desejos, inquietudes, movimentos, estudos; minha visão e minha produção artística.
Essa caminhada se deu até pouco tempo atrás, quando, aos poucos, passei a ter acesso a leituras, ensinos e aprendizagens. Outros saberes que me mostraram a possibilidade tanto de rever meu passado e aquilo que lá aprendi quanto de olhar para diferentes modos de existências no presente e para distintos conhecimentos. Foi uma oportunidade que, em minha inquietude, movimentou o interesse por estudar e conhecer outras perspectivas e a acolher essa problemática da multiplicidade de perspectivas e conhecimentos dentro do campo das artes, seja na produção do trabalho artístico, seja nas práticas educativas e de pesquisa que realizo.
Vale dizer que essa problemática que apresento a você, leitor, neste sucinto texto — quanto à importância de olhar para outras perspectivas de existências e pensar como acolher e trazer para as ações educativas esses outros conhecimentos que habitam a arte contemporânea — é pensada a partir de meu corpo, mas também se coloca nas artes visuais, cujas instituições cada vez mais acolhem sujeitos não brancos em exposições, trazendo a público outros modos de fazer arte e de existir no mundo. Pensar esse campo atual da arte e as maneiras de existir e continuar trabalhando com arte, educação e ação cultural em diferentes contextos é urgente, sobretudo pensar a escuta daquilo que precisa saber para dizer ou inventar léxicos para contar o que precisa ser contado.
O atual estado das dinâmicas de disputas que vivenciamos se refere aos impactos da separação radical e ontológica de sujeito e objeto, natureza e cultura; conhecimento que foi historicamente construído e imposto pelo Ocidente, uma chave conceitual/política que, em síntese, produziu um pensamento e nos condicionou a ele se colocando como centro, logo, colocando o ser humano (europeu, branco, colonial) como núcleo funcional da Terra.
Estamos em meio a uma busca tardia, mas muito importante em aprender e dialogar com outras filosofias para enxergar que quem está à beira da falência talvez não seja a o planeta Terra, mas, quem sabe, o sistema capitalista e seu engenho de progresso e desenvolvimento. Não são poucos os exemplos disso.
Esse sistema capitalista e, em especial, algumas de suas estruturas como a arte, podem ser compreendidos pela chave de “sistemão”, como nominou o artista makuxi Jaider Esbell. Poderia fazer um paralelo ao sistema político típico do Brasil chamado de “centrão”, por controlar o poder e as diretrizes do país desde sempre, a partir de acordos em benefício próprio para a manutenção da colonialidade que os mantém no poder.
É perceptível que, no pensamento atual de luta, nós clamamos por um abandono do antropocentrismo, pelo resgate dos espaços e tempos em que todas as espécies possam se renovar e existir relacionalmente, configurando, quem sabe, um entendimento diferente do que é território e, por sequência, como este se configura por meio de linguagens e existências.
No universo das artes, o que se tem desejado atualmente por aqueles que se engajam nesta área de trabalho com um lugar de luta e produção de vida, é um território alargado que busca acolher outras epistemologias e outros pensamentos, tentando se contrapor ou avançar nas lutas contracoloniais e modernas. Esse alargamento do campo das artes se dá a partir da luta de indígenas, negros e outras comunidades que o poder hegemônico insiste em classificar de “minorias”. Tais lutas utilizam, entre outras teorias, a chamada “virada ontológica”. Ela é propagada pela antropologia como chave para pensamento que através da narrativa e do ensinamento corrobora que, na presença no mundo, diversas perspectivas de existências vêm nos possibilitando a construção ou o alargamento do que se entende por contemporâneo em um campo mais aberto, no qual essas disputas ficam aparentes tanto quanto a necessidade de desnormatizar uma única leitura de mundo, das artes e de modos de fazer e pensar sobre as práticas artísticas.
Não são poucos os importantes efeitos que nós temos percebido. Hoje não se pode mais falar ou fazer uma exposição de arte ou um projeto de ação cultural e educativa grande sem considerar artistas e educadores ou a arte indígena, negros e a comunidade LGBTQIA+, sem perceber que o projeto está em falta ou evidentemente enviesado. Talvez esse seja um dos grandes e importantes marcos de nossos tempos nesse “sistemão”.
Essas práticas políticas são recentes e ainda estamos territorializando-as ou, então, desterritorializando-as dessa mesma “virada ontológica”, buscando entendê-las nas diferenças. Essa problemática nos permite vislumbrar ou imaginar outros mundos possíveis ou mesmo potencializar as armas contra esse plantantionceno hegemônico em nossos dias que soterra ou transforma tudo e todos em commodities.
Nessa problemática, vale pensar sobre a potência de ação da produção artística contemporânea – ainda que cheia de armadilhas, como indicou o artista Jaider Esbell (2020b), por exemplo, tida nas chaves de arte indígena contemporânea ou arte contemporânea indígena, só para citar dois exemplos e algumas das terminologias empregadas. Essas produções são realizadas com e a partir do modo ocidental de pensar as artes, ainda que carregadas de outras epistemologias. É necessário, então, pensarmos nesse território chamado Brasil e na importância de criarmos léxicos “permundos”, tal qual também apontou Jaider Esbell (2020), entendendo que são produções de agenciamentos singulares e que estão em relação às linguagens, leituras, análises e aos modos de produção artística que foram ensinados e propagados historicamente.
Essas produções, como as de Jaider Esbell, apontam para possíveis proposições a fim de pensar essa questão de diálogos “permundos” com as quais estão produzindo exercícios de resistência únicos que sugerem maneiras de pensar a atual conjuntura da arte, de trânsitos e embates culturais a partir de lutas em meio a um grande sistema.
Assim, o atual cenário se faz como uma oportunidade para pensamos nas dinâmicas que, como expressão do capitalismo, se fazem como uma imensa “máquina abstrata” (DELEUZE, 2013) que tudo engole, tudo incorpora e canibaliza com muita facilidade para operar e fazer operar em seu favor, mas que, ainda assim, nesse jogo de força, avanços são conseguidos. Assim, é importante pensar os modos de existência de invenção, criação, construção, diálogo, tradução e compreensão entre mundos para além das constantes armadilhas de colocarmos e instrumentalizarmos formas radicalmente diferentes de vida para o serviço de leituras, pensamentos, demandas e anseios ocidentais e como salvadoras respostas para seus problemas, digamos, “insolucionáveis” desse “sistemão”.
É preciso também pensar no como, no porquê das práticas e nas invenções que podem nos armar contra essa máquina abstrata que passa a “engolir” facilmente tais produções e pensamentos que apresentam outras perspectivas de mundo. Essa ação de “tragar” não transforma, mas apazigua ou sinaliza uma intenção apaziguadora a partir da incorporação de um braço a mais na sua prática capitalista — ou seja, o que antes era potência de transformação pode tornar-se fetiche, mercadoria.
Talvez este seja um momento oportuno para pensar nas relações entre as diferentes perspectivas que trazem as produções artísticas em relação aos modos com que conduzimos o ensino, as aprendizagens, as pedagogias e, por sequência, as leituras, as exibições, as práticas de mediação e outras dinâmicas que compõem e formam o sistema das artes e de ação cultural.
Se ainda não inventamos palavras, sintaxes, gramáticas ou estrutura de pensamento para esse diálogo “permundos” e, enquanto se espera que artistas, educadores ou pesquisadores (só para citar alguns) experimentem ou se comprometam nessa criação, é preciso “trabalhar com o que se tem”, possibilitando bases para que tal mudança aconteça. Arrisco-me nesta produção partilhada de conhecimento a olhar com outro olhar, sob outra perspectiva, para algo que em meu processo formativo e nos modos como se construíram as reflexões sobre a arte contemporânea quanto às suas bases conceituais estava em um lugar menor. Digo sobre o lugar da técnica para pensar uma possível dobra que venha a somar nessa intencionalidade.
Quero acreditar que há um espaço para pensar a partir das técnicas utilizadas nas produções artísticas que criam conexões “permundos” e que, mesmo estando no sistema hegemônico das artes, acabam por falar de outras cosmogonias. Entendo que a técnica é também expressão da natureza e produzida não só por humanos, mas por todos os seres e entes que engendram existências. E compreendo isso à luz dos estudos do filósofo Yuk Hui (2022), para apontar que essas produções que aqui estamos pensando acabam por inventar e produzir um novo modo de existência, uma prática, que expande a compreensão da virada ontológica, confrontando-as a partir das tecnologias para o alargamento do território.
Como exemplo, lembro-me do que nos diz a antropóloga Els Lagrou (2015), quando aponta o indígena como um produtor de um regime específico de produção estética do conhecimento. Desse apontamento, podemos dizer que tais produções na contemporaneidade apresentadas no “sistemão” das artes podem ser percebidas como um singular agente de cosmotécnicas — modos de produzir práticas — muito importantes como armas de guerra para mantenimento da multiplicidade e da pluralidade de mundos neste território-mundo em que vivemos, somando significativamente para a construção de relações renovadas entre naturezas, técnicas, arte e educação. Elas atuam em favor de aprendizagens, mas também de desaprendizagens do que está estabelecido e nos é colocado como a norma epistêmica.
Afinal, o problema para a intersecção entre os diferentes campos indicado neste texto se dá em pensar o seguinte: como é possível desaprender o que está posto sem erigir novas certezas estanques que acabam por determinar e reproduzir aquilo que estamos tentando combater? E quais as lógicas de saber e poder envolvidas em cada produção ou processo de ensino e aprendizagem?
Mais que ter respostas a essas perguntas, o que precisamos fazer é habitar o problema. Eis o nosso desafio, pois é assim, lembrando Donna Haraway (2016), que continuamos a praticar uma maneira de estabelecer continuidades de modos de estar e de fazer mundos, pois, se não se resolver o problema da criação, tudo se faz uma catástrofe tal qual em que vivemos. A autora comenta que não está “[…] interessada em reconciliação ou restauração, mas profundamente comprometida com as possibilidades mais modestas de recuperação parcial e de nos darmos bem juntos. Chamemos isso de conviver com o problema” (HARAWAY, 2016, p. 10). Tomo para mim esse pensamento, implicando-o no que aqui foi dito, e para, a partir dele, abrir novas possibilidades de operação e realização nas e com as práticas artísticas e educativas.
Encerro reafirmando que, neste texto, busquei pensar em público nesse campo dissensual e em constante transformação que pulsa com profunda intensidade nos dias de hoje quanto a estratégias de aparição e visibilidade das e nas batalhas com e através das produções que nos mostram que, neste mundo, é preciso continuar existindo e ainda possibilitar brotar infinitos mundos.
“há uma relação de sustentação entre a língua e a coletividade”
FANON, Frantz. Pele negra, máscaras brancas, 2008, p. 49.
Bibliografia
DELEUZE, Gilles. Conversações. Trad. Peter Pál Pelbart. São Paulo: Editora 34, 2013.
FANON, Frantz. Pele negra, máscaras brancas. Trad. Sebastião Nascimento. Bahia: Editora Edufba, 2008.
HARAWAY, Donna. Staying with the Trouble: Making Kin in the Chthulucene. Durham and London: Duke University Press. 2016.
HUI, Yuk. Sobre a cosmotécnica: por uma relação renovada entre tecnologia e natureza no antropoceno. Trad. Thiago Novaes. In.: NOVAES, Thiago; VILALTA, Lucas; SMARIERI, Evandro (Org.). Máquina Aberta: A mentalidade técnica de Gilbert Simondon. . São Paulo: Editora Dialética, 2022.
LAGROU, Els. Entre xamãs e artistas: entrevista com Els Lagrou. Revista Usina, n. 20. Disponível em: < https://revistausina.com/2015/07/15 >. Acesso em: 15 maio 2022.
ESBELL, Jaider. Léxico para permundos – Como a entidade artista indígena pode “pescar” em duas águas e servir a duplas comunidades?. Texto no site do artista, 2020 . Disponível em: <http://www.jaideresbell.com.br/site/2020/07/16/lexico-para-permundos-como-a-entidade-artista-indigena-pode-pescar-em-duas-aguas-e-servir-a-duplas-comunidades/>. Acesso em: 15 maio 2022.
ESBELL, Jaider. Arte indígena contemporânea como armadilha para armadilhas. Texto no site do artista, 2020 b. Disponível em: <http://www.jaideresbell.com.br/site/2020/07/09/a-arte-indigena-contemporanea-como-armadilha-para-armadilhas/> Acesso em: 17 maio 2022.