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M: o que faz umx artista, Z?
Z: pinta, desenha e pensa.
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Quando tinha cinco anos, sua filha lhe disse que era artista. A fim de entender melhor o ponto de vista da criança sobre a arte, decidiu perguntar o que, na sua opinião, um artista faz. Foram necessárias mais de duas décadas para chegar à resposta que Z formulou em menos de dez segundos.
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Ao longo dos últimos anos, uma das perguntas que mais escutou de pessoas do seu campo de atuação foi sobre o que exatamente ela faz: curadoria, educação, acompanhamento crítico, “mediação curatorial”, consultoria, o quê?
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Durante esse mesmo período, um dos questionamentos que mais fez a si mesma foi o que faz umx artista.
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: Quais são as suas qualidades teóricas e práticas? O que (não) cabe na sua práxis? Com que dispositivos lida? O que realmente cria e qual é a sua função política no mundo? O quanto isso se atualiza e/ou se perpetua? Qual é ou deveria ser a sua capacidade crítica? Ela é condição para a arte? Quanto do seu trabalho destina ao imponderável? O que do que faz é matemático? Como chega ao poético sem escrever poemas? Como faz arte sem ter que fazer obras? O que escreve é crítica, teoria ou literatura? Um artista que cria e gere projetos é um artista-gestor? Um artista-curador o é porque organiza exposições? Um artista que dá aulas e/ou que compreende a educação como um campo de imaginação política precisa ser chamado artista-educadore? Não são todes pesquisadores? Não deveriam ser todes apenas artistas? Qual é a dimensão ética do seu fazer?
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Não seria esse o lugar de desobediência civil que a arte nos possibilita? – se perguntava incessantemente.
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Ela cresceu dentro de escolas. Não de uma, mas de várias. E isso, a partir de um entendimento mais cartesiano, poderia comodamente justificar seu apreço e seu interesse pela educação, não necessariamente pela arte. Mas esse raciocínio sempre lhe pareceu insuficiente.
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Quando estava grávida dela, sua mãe dava aulas de direito e legislação na escola onde, mais tarde, foi estudar e onde seu pai lecionou durante toda a sua infância as disciplinas de matemática financeira, estatística, administração e controle, contabilidade e custo; onde sua avó se aposentou como professora de história; onde sua tia, também professora, de educação física, deu aulas de inglês; e onde ela, em algum momento entre 2000 e 2002, também lecionou.
Seus pais davam aula num curso técnico em administração, que, junto ao normal ou magistério, era uma das poucas possibilidades de cursar o ensino médio na cidade onde cresceu. Sua mãe, de dia; seu pai, à noite, em momentos diferentes da sua infância. Seu pai, às vezes, a levava junto – ela realmente gostava. A escola, à noite, pelo menos para a criança que foi, era sempre mais interessante que de dia. Todo fim de ano havia festa na sua casa, e ela lembra até hoje os nomes de alguns dos alunos de seu pai. Não raro, ele era paraninfo das turmas para as quais lecionava. Mas queria mesmo era ser passista de escola de samba. Não tem irmãos.
Sua tia lecionou toda a sua vida em escola pública. A maior parte dela em praticamente um mesmo estabelecimento, o Marechal Rondon, originalmente criado como uma Escola Polivalente, modelo fundado pelo regime militar – a partir de relações estabelecidas com o governo norte-americano –, que sediou escolas em todos os estados brasileiros com a intenção (ou pretexto) de formar trabalhadores e o objetivo não declarado de perpetuar a organização classista e racista da sociedade brasileira. Longe de estar ciente disso naquele momento, dos 8 aos 10 anos, suas tardes preferidas foram passadas no Poli, entre a quadra, a pista de corrida, a salinha da educação física e a cantina. Era uma escola cheia de espaços para se fazer algo, cuja construção encontrava sentido numa relação complexa da arquitetura moderna com a de quartéis do exército. Lembra que o professor do que, para ela, parecia ser uma oficina de marcenaria, era formado em filosofia. Aquele lugar, apesar de contraditório, ou justamente por isso, lhe parecia mágico. Sua tia era também musicista.
Alguns anos mais tarde, quando já não passava mais o contraturno por lá e após a queda do modelo polivalente, seu tio assumiu a direção. Não raro, ele passava os fins de semana capinando o enorme terreno, pintando paredes e consertando coisas. Quando ele e sua tia se conheceram, seus avós impuseram uma condição para que pudessem se casar: que ele deixasse de ser “artista” e escolhesse algo para estudar. Ele se licenciou em educação física, assim como o seu filho, vinte anos mais tarde. Seu tio era filiado ao partido dos trabalhadores desde a sua fundação, isso ela lembra bem, desde criança.
Sua avó estudou história quando já era mãe de duas filhas grandes e logo fez uma pós-graduação. Era uma das poucas pessoas da família que entendia quando ela dizia que estava fazendo um doutorado em artes. Não sabia se pelo doutorado em si (algo que ela mencionou que queria ter feito) ou se pela ideia romântica que tinha do que poderia ser a arte. Ela achava bonito o fato de alguém gostar tanto de estudar. Nunca foi sua aluna, pois sua avó se aposentou um ano antes de que isso fora possível. Quando tinha 12 anos, no entanto, a avó lhe ensinou a corrigir provas, o que, sem dúvida, era uma contravenção – e ela adorava. Era algo que só as duas sabiam e ela realmente tinha prazer em imaginar quem eram aquelas pessoas por trás das respostas. Levou alguns anos para entender que “c” e “x” podem ser bem relativos, e que uma prova poderia muito bem ser um poema. Talvez tenha sido esse o maior ensinamento político-poético-pedagógico de sua avó.
O pai de sua filha também é professor – de filosofia. Até a sua chegada não havia nenhum na família. Num dos primeiros encontros que tiveram, tratando de lhe ensinar algo sobre filosofia da ciência, seu apreço por Paul Feyerabend e sua teoria do “contra o método”, tentou explicar a teoria da indução, coisa que até hoje ela não entendeu. O anarquismo epistemológico de Feyerabend, entretanto, foi base para muitas das suas oficinas e conferências.
Na sua família quase todo mundo deu aula: história, educação física, direito e legislação, matemática, filosofia, inglês, língua portuguesa, artes. Mas ninguém é artista. Exceto quem é.
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Recentemente, por conta de um possível convite para participar de um debate, foi interpelada sobre a ‘bio’ que enviou, na qual constava: “artista, curadora e pesquisadora”. O questionamento se devia ao fato de ela se apresentar como artista. A informação soou curiosa, senão estranha, à pessoa que endereçava o convite, uma vez que ela atua principalmente entre a curadoria e a educação. Tratando de auxiliar na resolução da dúvida, respondeu que, além de um fato, já que era formada em artes e foi nas artes que aprendeu a pensar da maneira como pensa, o fazia também, senão principalmente, por posição política, pois é a partir da arte que imagina e atua politicamente no mundo.
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Quando tinha sete ou oito anos, sua mãe a matriculou na Escolinha de Artes da UFRGS, localizada na Rua Senhor dos Passos no 248, centro de Porto Alegre, elevador ao fundo, à direita, 4o andar, a 80km, ou 1h15 de ônibus da cidade onde morava à época, Butiá. No mesmo prédio onde dez anos mais tarde, elevador à esquerda, com capacidade para três pessoas, começaria o bacharelado em artes. Nunca fez licenciatura. Sempre quis dar aulas, mas nunca quis ser professora. Sempre quis ser professora, mas não para dar aulas.
A bem da verdade, nunca havia cogitado estudar artes, até preencher, em 1996, o formulário do vestibular. Jornalismo, psicologia, arquitetura – estas eram as suas primeiras opções. Mas ela queria mesmo era ser poeta, então acabou marcando o quadradinho onde dizia “artes plásticas”.
Intuição?
– além de selvagem, ela “é sempre certeira”, alegou o professor de metodologia da pesquisa em artes II, no segundo semestre do doutorado, concluído em 2019, vinte e dois anos após permitir que a sua intuição falasse mais alto.
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A ciência a serviço dos conhecimentos molhados de vida sempre lhe pareceu mais interessante que ela mesma.
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Flora apartamentalis foi o título que deu ao seu trabalho de conclusão de curso na graduação em artes plásticas, ênfase em escultura, concluído em 2002. Naquela época, ela estava muito interessada na vida das plantas e na pergunta de moda da época: “quando é arte?”. Por sorte, perdeu o disquete no qual estava o arquivo da monografia. Sem dúvida, odiaria tudo o que havia escrito naquele momento. No entanto, a única pergunta feita pela banca ela jamais esqueceu: e pra você, interessa que as plantas vivam ou não?
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Não, na arte, definitivamente, não vale tudo.
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No mestrado, em história, teoria e crítica de arte, cursado dez anos após a conclusão da graduação, se dedicou a investigar o fenômeno educational turn e o contexto de arte brasileiro. Era uma dissertação teórica, mas ela não se conteve e meteu uma tradução e uma conversa no meio. Entendia que esse era o único jeito de o leitore compreender exatamente o que ela estava querendo dizer – algo que, sem dúvida, aprendeu com a arte, não com a teoria.
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Entre uma coisa e outra: um longo trabalho junto a uma instituição cultural responsável por organizar uma bienal de arte. Foi a partir dessa experiência que começou a se interessar pelas relações entre as práticas artísticas, educativas e curatoriais e como estas contribuem, friccionam e/ou determinam as políticas e pedagogias institucionais. Foi a partir dela e de experiências posteriores que formulou o que chama de “pedagogias institucionais”, ou o conjunto de metodologias e práticas que compõem e dão vida e forma a uma instituição, organização ou um projeto de arte. Para o bem e para o mal. Está escrevendo um texto sobre isso, logo deve sair.
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Ao ingressar no doutorado, com uma pesquisa sobre escolas de artistas, e ao longo do curso, o que mais escutou de seus colegas da linha de história, teoria e crítica da arte era que seu trabalho deveria estar sediado na linha de ensino; e dos seus colegas do ensino, que ele deveria estar na linha de história, teoria e crítica – comentários com os quais facilmente concordaria se o trabalho não fosse o que é: uma tese em processos artísticos contemporâneos escrita por uma artista que queria ser poeta, que atua como curadora e que tem interesse pelas instituições e suas políticas e pedagogias.
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Entendia que somente na linha de processos artísticos contemporâneos, que se coloca em eterno campo, poderia gerar a confusão epistemológica e o incômodo conceitual nos modos de indexar, nominar, narrar, historicizar, ensinar, explicar e pensar a arte, tal como desejava.
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Antes que se vuelva pedagogia foi o primeiro nome que ela lhe deu. Ele diz muito sobre quem ela lê, o que ela deseja e como ela pensa e atua:
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Ao refletir sobre a função do ator/não-ator no teatro do oprimido, e mais precisamente sobre o que faz de um ator um ator, Augusto Boal pondera que o ator faz muitas coisas, inclusive atua. Logo, tudo o que ele faz enquanto não está atuando também faz dele um ator, pois é parte constitutiva da sua vida e da sua forma de viver e pensar o mundo.
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Em entrevista publicada em 1978, Paulo Freire afirmava que “como educadores nós somos políticos e também artistas”.
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Uma década antes, em 1968, Hélio Oiticica, que se dizia não exatamente um artista, mas um provocador de estados de invenção, professava que no futuro todos os artistas seriam ou propositores ou empresários ou educadores.
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No poema Interessere, Décio Pignatari anuncia que “na ciência interessa o que não é ciência, na poesia interessa o que não é poesia, na arte interessa o que não é arte”.
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A poesia “reabre ao indefinido”, afirmou Franco Bifo Berardi alguns anos atrás, pois provoca uma espécie de erro de sistema nos códigos estabelecidos, provocando contradições “deslumbrantes, ilustrativas e inquietantes” e criando novos “erros” naquilo que nos é imposto como limite performativo e produtivo.
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“É no interior da língua que a língua deve ser combatida, desviada: não pela mensagem de que ele é o instrumento, mas pelo jogo das palavras de que ela é teatro”, arremata Barthes.
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“Escrever o que não acontece é tarefa da poesia”, dedilha Manoel de Barros. A da arte é a de nos colocar diante do mundo como se fosse pela primeira vez, complementa Frederico Morais.
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Llegar a lo poético sin tener que escribir poemas, comenta Luis Camnitzer, es el desafio de artistas (y de poetas).
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A impossibilidade como base de sua possibilidade, diria Blanchot. Um inédito-viável, responderia Paulo Freire. A arte como aquilo que faz a vida ser mais interessante que a arte, complementaria Robert Filliou.
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“A arte [e a poesia] como uma maneira de entendimento, de entender filosofia, ciência, política, religião, mas [que] é diferente de tudo isso, uma vez que os contêm de uma forma que nenhum deles pode contê-la”, finalizaria Maria Lind.
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A poesia (e a arte) e seus processos como “uma necessidade vital da nossa existência, [como aquela que] cria o tipo de luz sob a qual baseamos nossas esperanças e nossos sonhos de sobrevivência e mudança, primeiro como linguagem, depois como ideia, e então como ação mais tangível”, tal qual defende Audre Lorde.
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“Mesmo que não nos custe nada. Ou nos custe tudo.”, anunciou Frederico Morais há quase três décadas.
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“Porque a vida não é útil”, como nos ensina a desaprender Ailton Krenak.
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Diante disso, quem nos garante, então, que a arte e a educação sejam apenas o que elas (não) são?
Se a arte está onde aparentemente não está, onde ela está? E, consequentemente, se a educação está onde aparentemente não está, onde podemos encontrá-la?
Se arte não se ensina e a poesia não é um luxo, o que pode a educação?
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Quando um chimpanzé vale mais que um rato, todes perdemos – pensou.
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Na sua família ninguém é artista. Exceto quem é.
Na sua família todo mundo é educadore. Exceto quem não.
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Aprender a desaprender – talvez seja isso o que pode a educação.
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O que é mesmo que você faz, Mônica?
M: Invento para [me] conhecer, conforme sugere Manuel de Barros.