No dia 20 de maio de 2021, a artista Sara Lana conduziu uma edição do curso Processos Compartilhados, proporcionando um encontro virtual voltado à formação de artistas, educadores, produtores e demais profissionais relacionados ao campo das artes. Natural de Belo Horizonte, Sara estudou Matemática e Engenharia Elétrica. Em seus trabalhos, integra conhecimentos de Artes, Matemática, Arquitetura e Tecnologia de forma transdisciplinar e diversa – tabelas, mapas, sons e vídeos dividem o mesmo espaço, independente de suas epistemologias.
Suas ilustrações, por exemplo, revelam um caráter muito íntimo e delicado, ainda que em meio a números e coordenadas. Os mapas, antigas ferramentas de localização, dividem lugar com tecnologias atuais como o GPS. A partir de ações de captação sonora e do uso de imagens de câmeras de vigilância, a artista investiga ainda as relações entre espaços públicos e privados, realiza cartografias e reconhecimentos espaciais expandidos e propõe reflexões sobre as nossas relações com animais e seus modos de vida.
Na primeira parte do encontro, Sara falou sobre sua pesquisa utilizando um painel na plataforma de criação e compartilhamento de conteúdo Hot Glue, onde pudemos ver alguns de seus principais trabalhos. Em “Pontos Cegos”, Sara construiu um capacete com GPS capaz de reconhecer câmeras de vigilância em espaços públicos. A partir desse reconhecimento, ela criou um mapa com uma enorme quantidade de câmeras em diferentes pontos do centro de São Paulo. Em “Matilha”, criou uma rádio canina usando um sistema de captura e transmissão de som operado por cães vira-latas com coleiras que transmitem os sons de diferentes partes da cidade para uma estação receptora.
Cartografias, mapas e plantas
Em outras ações de cartografia, tais quais “Natal”, “Espécies de Espaço 1” e “Espécies de Espaço 2”, Sara se apropria de imagens de câmeras de vigilância que acessa pela internet. Em Espécies de Espaço 1, por exemplo, ela coleta imagens de ambientes internos e externos de casas de pessoas desconhecidas vivendo em diferentes lugares do mundo. Depois de captadas, tais imagens são organizadas e apresentadas ao público com legendas escritas em primeira pessoa, simulando uma espécie de diário pessoal. Este material compõe uma videoinstalação junto a plantas arquitetônicas, ilustrações e anotações que formam diários íntimos de cinco personagens cujos rostos nunca vemos.
Depois de algumas trocas com o público e de um breve intervalo, fomos convidados a uma prática coletiva usando ferramentas que Sara utiliza em sua pesquisa, uma oportunidade de entender seu processo criativo de dentro para fora. Nesta atividade, cada participante colocou uma imagem, vídeo ou texto de escolha própria em uma página coletiva na plataforma Hot Glue, resultando em um painel diverso e multicolorido (que você pode acessar a partir do link na coluna ao lado).
Depois disso, Sara nos apresentou o Open Street Map, uma plataforma aberta usada para construir mapas. Neste momento, usamos alguns conceitos básicos de programação computacional para transferir os conteúdos presentes na plataforma Hot Glue para o mapa, utilizando o Google Maps para indicar os locais onde estariam cada um dos conteúdos. Após surgirem algumas dúvidas, pouco a pouco sanadas pela convidada, o resultado final foi um mapa com diferentes marcações e localizações: uma forma interessante de criar narrativas, construir lugares e exercitar diferentes pontos de vista sobre a realidade.
De Sophie Calle a Sara Lana: aproximações com o desconhecido
Algo de muito peculiar nas imagens cinzentas que integram o trabalho “Espécies de Espaço 1” me lembrou a obra da artista francesa Sophie Calle, muito conhecida por investigar a intimidade alheia e trabalhar com questões de alteridade, assim como por usar dados da própria vida em sua prática artística.
Em 1979, por exemplo, Sophie Calle seguiu um desconhecido pelas ruas de Paris durante dois meses, acompanhando seus passos até Veneza. Mais adiante, os registros fotográficos dessa perseguição artística resultaram no trabalho “Suite Venetienne”, publicado no mesmo ano. Já em O Hotel (1981), a artista realizou uma catalogação fotográfica de objetos pessoais deixados por estranhos em quartos de hotéis, aos quais teve acesso ao se disfarçar de camareira. A vida, suas alegrias e desventuras são a matéria-prima do trabalho de Sophie Calle, uma artista que, seja por meio da fotografia, do vídeo ou da escrita, se dedica a cartografar sentimentos, momentos e sensações – a capturar o que não se pode ser capturado: a efemeridade da vida e das relações humanas.
Em ambas as obras, tanto a de Sara, quanto a de Sophie, vemos o interesse pela vida alheia, a catalogação de objetos pessoais e o apreço pela banalidade do cotidiano como questões que se manifestam de formas muito particulares em cada trabalho. Em Sara, as ferramentas e os formatos parecem ter uma importância tão grande quanto o conteúdo: os mapas, tabelas e equipamentos sonoros são fundamentais para propor noções ampliadas da realidade e exercitar um olhar mais atento aos pormenores dos lugares onde vivemos e por onde passamos. Ao mapear as câmeras de vigilância da cidade, Sara Lana denuncia a presença massiva de equipamentos de captação de imagens nos centros urbanos, assim como chama atenção ao controle que o Estado e as empresas privadas têm sobre os nossos dados e imagens, denunciando um dos efeitos da alienação tecnológica vivida na contemporaneidade.
Durante a atividade, pudemos nos aproximar do trabalho da artista e imergir em sua poética por um breve e intenso encontro, ao longo do qual fomos convidados a repensar lógicas sociais e conhecer novas formas de comunicação e geolocalização. No final, seguimos refletindo sobre como a arte pode ser uma ferramenta potente para propor novas formas de interação à distância e propiciar relações de afeto no ambiente virtual – aspecto que ganha valor especialmente no momento atual, quando muitos de nós passamos a maior parte do tempo no espaço limitado da casa, isolados de outras pessoas. Ao longo do encontro com Sara Lana, pudemos sonhar com lugares possíveis e viajar juntos, sem sair de casa, criando intimidade com o desconhecido e desenhando narrativas simultaneamente pessoais e coletivas.