Convidado a conduzir uma edição do curso Transversalidades no CCBB SP, o artista, pesquisador e educador João Simões iniciou a apresentação lembrando do Dia Internacional da Luta contra a LGBTfobia, celebrado em 17 de maio. “Essa data se associa historicamente à retirada do termo ‘homossexualismo’ do hall de distúrbios mentais pela Organização Mundial de Saúde (OMS) em 1990 e, consequentemente, à abolição desse termo que até então era utilizado pela imprensa como forma de retratar os grupos de pessoas homossexuais”. Contudo, como destaca João, a questão caminha ainda a passos lentos em relação às pessoas transexuais e travestis, já que a patologização desses grupos permanece na última atualização do CID, uma classificação estatística internacional de problemas e doenças relacionados à saúde.
Conforme destaca o artista, trata-se de um sistema que invisibiliza e emudece a voz de muitos grupos considerados minoritários reforçando uma violência de Estado e da sociedade no país que mais mata LGBTs. “Vimos a morte de Marielle Franco, mulher negra lésbica, mãe, socióloga, feminista, militante por direitos humanos e política brasileira em um crime ainda não solucionado e também de Matheusa Passarelli, estudante de arte da UERJ, pessoa trans não-binária, um corpo estranho. Situações que nos expõem nossas fraquezas e vulnerabilidades diante dessas questões tão urgentes”, observa.
Como possível antídoto a esse cenário, entretanto, João Simões traz exemplos de espaços e práticas que ressaltam a emergência de novos valores e atores sociais. “Apesar dos inúmeros golpes e terrorismos produzidos pelo Estado majoritariamente dominado por homens brancos heterossexuais, cisgêneros e fundamentalistas religiosos, vemos surgir um enorme número de pessoas pretas, indígenas, caboclas, quilombolas, gordas, macumbeiras, nordestinas, trans, lésbicas, bissexuais, assexuadas, bichas, com deficiência física, mulheres heterossexuais, e toda multiplicidade de corpos e pessoas ditas desviantes, periféricas e vulneráveis, que vivendo agora em 2018 não estão dispostas a se submeter a ninguém”.
Cores e valores
“Cores e valores” é o nome de uma música dos Racionais MC’s, lançada em álbum homônimo no ano de 2014. É a partir dessa canção que João Simões propõe algumas discussões relacionadas a raça e gênero, especialmente dentro de um recorte da cultura e da arte. “As cores presentes na rima de Mano Brown, presentes também nos corpos de Matheusa e Marielle, nos fazem refletir sobre as questões de racialidade, assim como as cores da bandeira LGBT e da bandeira do orgulho trans nos trazem os movimentos de luta por equidade de gênero. Com a clareza política de algo que lhes foi negado, como o acesso básico às escolas, à saúde, à alimentação, à mobilidade e ao conhecimento de suas histórias, essas pessoas criam agora seus próprios mecanismos de geração de força, inventando novas maneiras de estar junto, de aprender, de trocar e de roçarem-se uns aos outros, com o desejo e o afeto que não lhes pareciam possíveis, quando nem mesmo acreditavam na beleza de seus corpos”, sintetiza o artista.
Co-criador da plataforma Explode!, Simões menciona também a residência Explode! junto do Cidade Queer, projeto que aconteceu em 2016 e envolveu ações de diversos grupos pela cidade, promovendo espaços autônomos de segurança, acolhimento, coragem, reflexão e produção de conhecimento e cultura. “Existem muitos outros coletivos, não somente nos âmbitos da cultura e da arte. Muitos ligados ao poder público e distribuídos também nos demais estados do país. Espaços que se fortalecem e fazem emergir o que não se pode mais esconder ou guardar, em relação a subjetividades periféricas, vulneráveis, minoritárias, tratadas como subalternas, negras, transviadas, sapatão entre outras. São pessoas prontas para desfrutarem dos mesmos recursos e infraestruturas oferecidas pela cidade, até então limitadas a um saber, um corpo, uma classe social e uma cultura hegemônica específica”, analisa, reconhecendo um amplo movimento emergente.
O desafio anti-colonial
Nesses espaços autônomos dos quais fala João, os coletivos criam histórias distintas da narrativa colonial instaurada, rompendo a genealogia e a continuidade da cultura e do patriarcado branco médio-burguês, apesar de muitas vezes terem que lidar com ela, na medida que habitam o mesmo campo de forças vigentes. “São grupos que criam suas próprias narrativas, reconhecem suas histórias e redistribuem também nesse processo, a violência – termo cunhado pela pesquisadora Jota Mombaça. Para operar essa redistribuição, não bastaria apenas que aceitassem e representassem gentilmente a cultura periférica como parte do sistema; faz-se necessário liberar espaços, reduzir a participação de certos corpos dando lugar a outros”, observa.
De maneira muito prática e objetiva, o que se propõe é a substituição de homens brancos, ricos e cisgêneros dos principais postos de direção e curadoria institucional. “A ocupação desses postos, naturalizada como neutra quando sabemos que não há sujeito neutro, é sintoma de um tipo específico de cultura e, consequentemente, de violência que reproduzimos entre combinações simbólicas, imaginárias e a efetivação desse projeto na cidade”, completa o artista.
Em seguida, João mostra um trecho de “O perigo de uma única história”, palestra de Chimamanda Ngozi Adichie no TEDglobal. Em sua fala, a escritora nigeriana toca em um ponto que vai de encontro ao pensamento de Jota: “É assim que se cria uma única história: mostre um povo como uma coisa, como somente uma coisa, repetidamente, e será o que eles se tornarão. É impossível falar sobre única história sem falar sobre poder. Há uma palavra, uma palavra da tribo Igbo, que eu lembro sempre que penso sobre as estruturas de poder do mundo, e a palavra é ‘nkali’. É um substantivo que livremente se traduz: ‘ser maior do que o outro’. Como nossos mundos econômico e político, histórias também são definidas pelo princípio do ‘nkali’. Como são contadas, quem as conta, quando e quantas histórias são contadas, tudo realmente depende do poder”.
Mais adiante, volta a refletir sobre palavras de Jota Mombaça, citando uma passagem do texto “Rumo a uma redistribuição desobediente de gênero e anticolonial da violência!”. “A luta da descolonização é sempre uma luta pela abolição do ponto de vista do colonizador e, consequentemente, é uma luta pelo fim do mundo – o fim de um mundo. Fim do mundo como o conhecemos. Como nos foi dado conhecer – mundo devastado pela destruição criativa do capitalismo, ordenado pela supremacia branca, normalizado pela cisgeneridade como ideal regulatório, reproduzido pela heteronormatividade, governado pelo ideal machista de silenciamento das mulheres e do feminino, e atualizado pela colonialidade do poder; mundo da razão controladora, da distribuição desigual da violência, do genocídio sistemático de populações racializadas, empobrecidas, indígenas, trans*, e de outras tantas”.