Tendo como estímulo inicial o trabalho do artista estadunidense Basquiat, exposto no CCBB DF entre abril e julho de 2018, a pesquisadora e gestora cultural Renata Bittencourt foi convidada a contextualizá-lo em uma linhagem de artistas afro-americanos que incorporam em suas obras questões relacionadas à história da diáspora negra. Ao longo do encontro, foram propostas reflexões sobre obras de alguns destes criadores, bem como seus modos de abordagem de temas político-culturais.
A pesquisadora inicia sua apresentação a partir de um momento emblemático para a história, e uma série de fatos marcantes na trajetória do Movimento de Direitos Civis – o discurso de Martin Luther King na Marcha por Empregos e Liberdade que mobiliza centenas de milhares de pessoas, vindas de todo o país, para se concentrar em Washington DC, em 1963. O encontro foi marcado por vários discursos que expunham a situação do negro naquela época, e demandavam liberdade e empregos.
O marco de 1963 simboliza cem anos da Proclamação de Emancipação de Abraham Lincoln, realizada durante a Guerra Civil Americana. Também foi ano do discurso de John F. Kennedy sobre a necessidade do fim da segregação racial e social nos EUA, reconhecendo o incendiário problema que o país vivia, fato que culminou em seu assassinato em novembro do mesmo ano.
Neste mesmo período, Billie Holiday, Nina Simone e Sam Cooke, artistas negros americanos, dedicam sua carreira musical para escrever canções que expõem e discutem as mesmas questões, sua forma de acompanhar os movimentos. Change is gonna come (A mudança virá), de Sam Cooke, é citada por Obama 45 anos após o lançamento da canção, durante sua posse à presidência dos EUA – o que só poderia ser possível pela imensa movimentação política e social que aconteceu anteriormente. A música segue abaixo, interpretada por dois outros artistas.
Strange fruit (Fruto estranho)
Publicado em 1963, o livro “Cem anos de linchamento” publica notícias recolhidas ao longo dos 100 anos da Proclamação de Emancipação, que relatam linchamentos ocorridos no país. Nesse mesmo ano, quatro crianças foram mortas em um bombardeio executado numa igreja pelos Ku Klux Klan – movimento extremista formado por um grupo de pessoas que incluía xerifes e médicos que, em rituais noturnos, tinham suas faces ocultas por capuzes brancos e pontudos, e tochas de fogo nas mãos, para entrarem irreconhecíveis nas casas, e raptar pessoas que poderiam nunca mais ser vistas.
28 de Agosto de 1963, a data escolhida para o discurso de Martin Luther King na Marcha por Empregos e Liberdade marcava exatamente oito anos do emblemático assassinato de Emmet Till, o garoto de 14 anos cujo corpo foi encontrado dilacerado boiando num rio, na época em que passava férias na casa do tio, no sul do país. Carolyn Bryant, mulher que o acusou de a ter paquerado – fato que causou o bruto assassinato do jovem por seu marido – recentemente confessou que “isso não era inteiramente verdade”. Apesar de extremamente comum para a época – um simples assobio de um homem negro para uma mulher branca causar um linchamento – o acontecimento chamou a atenção da mídia de uma forma mais ampla e intensa por se tratar de um menino tão jovem. Por exigência da mãe, o velório foi feito de caixão aberto, para que todos pudessem ver o que foi feito de seu filho, uma forma de impulsionar as marchas por direito.
Os linchamentos aconteciam como eventos dominicais, um espetáculo a ser assistido com direito a barraquinhas de comida, fotografias com poses ao lado dos corpos, cartões postais com imagens do linchamento, e venda de fragmentos dos corpos dos mortos. Todas essas práticas configuravam, além da própria eliminação, estratégias sistemáticas da criação do terror que levaram por medo, em menos de uma década, a migração de milhões de pessoas do Sul do país, região rural e mais descriminatória dos EUA. O artista Jacob Lawrence retratou a saga negra americana em uma série de 60 pinturas que fazem um paralelo à migração dos pássaros. A série está inteira disponível na Phillips Collection e acompanha legendas bastante pedagógicas.
Melvin Adwards, Norman Lewis, Barbara Chase-Riboud, Robert Mapplethorpe, Barkley Hendricks, Renee Cox, Glenn Ligonn, David Hammons e Kehinde Wiley são artistas que também incorporam em suas obras questões relacionadas à história da diáspora negra, e têm trabalhos de extremo significado para a trajetória da luta que ainda segue pelos direitos civis.
Para criar um paralelo de toda a história americana com o Brasil, nós temos em nosso país 23 mil jovens negros assassinados por ano – 1 a cada 23 minutos. Nas mortes causadas pela polícia, 76% é de negros ou pardos. Dos homicídios executados, a cada dia, 1 é por linchamento. Nos últimos 60 anos, a contagem de participantes dos feitos é de 1 milhão de pessoas.
“…uma das ironias das relações negros-brancos que,
a partir do que o homem branco imagina que o homem negro é,
o negro é capaz de saber quem é o homem branco.”
James Baldwin