Convidada a estabelecer diálogos com a exposição “Ex África”, a historiadora e ativista Ana Flávia Magalhães Pinto propôs o contexto brasileiro como ponto de partida para uma conversa que teve como tema 

“A existência reafirmada da gente negra”. Lembrando que o


 ano de 2018 marca o aniversário de 130 anos da abolição da escravatura no Brasil, Ana Flávia apresentou ao público as seguintes questões: Como nós entendemos nosso presente? Como pensamos o passado? Quais os lugares possíveis, no imaginário brasileiro, para a população negra? Quais os lugares possíveis para as múltiplas experiências africanas? Qual a expectativa a respeito desse cenário?

Inicialmente, Ana Flávia destacou o Brasil como o país da América que recebeu a maior quantidade de africanos escravizados. Curiosamente, no entanto, o processo de abolição deu lastro para um discurso de que, a despeito da violência e dos traumas, formou-se por aqui uma sociedade racialmente harmônica, na qual desigualdades sociais nada têm a ver com hierarquizações racializadas da população. Em sua visão, a construção do mito da democracia racial precisa ser revista, não apenas como uma falácia, mas como um projeto para a acomodação de uma realidade adversa.

No sentido de apagar ou excluir a população negra, dentre outra medidas tomadas, a historiadora ressalta duas que serviram diretamente à construção de uma imagem racialmente harmônica de nossa sociedade. Em primeiro lugar, a criação de duas leis que proibiam a entrada de africanos e outras populações negras no país, marcando um esforço de reformulação nacional em que a população afrodescendente e os africanos do continente seriam indesejáveis. Já no século XX, a promulgação de uma lei conhecida como Lei da Vadiagem (que criminalizava pessoas ociosas) atingiu justamente a população pobre e negra, sem deixar claro que realizava uma política racial de exclusão.

Conforme ressalta a pesquisadora, as políticas raciais e de exclusão existiriam explicitamente apenas nos Estados Unidos, com as leis Jim Crow. Para ela, tal processo delineia a construção de um outro que serviria como medida inversa à nossa formação nacional e também racial. Posteriormente, outra expressão desse outro – que não somos nós – seria a África do Sul, com o estabelecimento do Apartheid. Enquanto delineamos nacionalmente os sujeitos que precisam ser controlados e eliminados (ainda que o discurso da sua eliminação não seja marcado por uma violência explícita), há simultaneamente a construção do que deveria ser desconectado: tudo o que remete ao continente africano.

O afastamento discursivo das relações criadas no período da escravidão é apresentado, portanto, como a forma que o Brasil encontrou para produzir, mesmo em escala cognitiva, essa invisibilidade negra e a incompatibilidade negra no tempo presente. Desse modo, o preconceito de cor é algo que precisa ser pensado como aspecto constitutivo da experiência nacional brasileira, assim como da nossa formação cidadã e dos modos como se construiu a ideia de humanidade e como se dão as relações com humanos de outras partes do mundo. Ao falar de exclusão, dialogamos com as expectativas do genocídio negro no Brasil e o pensamento de Abdias do Nascimento, entre outros intelectuais negros e negras que refletiram sobre o processo histórico brasileiro e a encruzilhada que é o exercício da cidadania no país.

Ver as populações negras no pós-abolição como resquício de um passado que deveria ser superado limita nossa percepção da historicidade brasileira e, por consequência, molda o interesse – ou desinteresse – pelas experiências vividas do outro lado do Atlântico e em outros pontos da diáspora, transformando-o em algo inexistente. Abarcar a historicidade das populações negras a partir de como se lidava com o presente apagou um aspecto fundamental da experiência brasileira e com os caminhos da construção da liberdade no Brasil. O que pensamos e o que fomos ensinados a pensar? 

De acordo com dados do recenseamento de 1872, para cada cinco pessoas pretas e pardas (categorias usadas à época), três eram livres ou libertas – ou seja, mais de 60% dessa população já vivia na liberdade antes do fim da escravidão. “Quando pensamos no período do Brasil colônia e Império, o que é acionado em nossa imaginação para falar de populações negras? A escravidão. É importante não desmerecer o lugar dela, porque legitimou uma série de práticas de exclusão e de interdição ao exercício de cidadania das pessoas. Mas o que nós sabemos sobre outras experiências?”, questiona a pesquisadora.

O processo de formação do pensamento brasileiro sobre si consolidou o fato de que toda pessoa negra é escravizada até que se prove o contrário, autorizando não só a escravização ilegal dos povos negros após 1831, assim como interditando muita gente negra ao reconhecimento de seus talentos e virtudes. O objetivo não era promover a convivência harmônica entre os diferentes grupos populacionais, mas uma subjugação de indígenas e africanos a europeus e seus descendentes.

Narrativas em disputa

“O que isso tem a ver com nossas políticas de memória atuais?”, pergunta Ana Flávia, pautando o longo processo histórico que não nos deixa enxergar, hoje, o lugar dos diferentes humanos, em especial de origem africana, no que chamamos história da humanidade. Em sua visão, a defesa da ideia de que a brasilidade se funda na convivência harmônica entre todas as raças, sustentada ao longo de décadas, nos impediu de conseguir elaborar o pensamento a respeito das diferentes experiências de cidadania no Brasil.

Ao pensar nas conquistas de direitos para os negros, muitas pessoas também não conseguem articular e/ou nem sabem quem são os sujeitos que fizeram a história que altera e tem alterado o modo de se ensinar história no Brasil. Isso tem impacto não só em sala de aula, mas em todos os espaços. No processo de entender o que falta, o professor em sala passa por um processo de descoberta e aprendizado que ajuda a dimensionar tudo aquilo que nos foi roubado por meio desse rebaixamento.

As mesmas narrativas que mostram um protagonismo de homens brancos no abolicionismo apontam para o fato de que a luta contra a escravidão se tornou um movimento nacional. Nessa nação com uma grande quantidade de gente negra livre e liberta, o que essas pessoas estavam fazendo? Muitas delas estavam interferindo nesse cenário: escrevendo, falando nas ruas, lutando, articulando uma série de outros setores a lutar. E essas pessoas vão inclusive se tornar lideranças na literatura, na imprensa diária, na imprensa abolicionista, na imprensa negra, nos partidos e associações políticas e culturais, e também no teatro, na música, nas faculdades e nas escolas. Que pessoas são essas?

É difícil pensar quem eram as pessoas negras, livres e atuantes na luta contra a escravidão. Abstratamente podemos até pensar que houve reações, mas é difícil incluir e associar as informações que temos. Machado de Assis, por exemplo, foi um desses homens negros livres que atuaram na luta abolicionista. E não foi de modo isolado. Essa ideia da exceção – da excepcionalidade, como alguém único e desconectado de todo resto – faz parte da matriz de pensamento que inviabiliza a humanidade das pessoas negras e apaga a história. Para Ana Flávia, sujeitos que fazem pouco ou nenhum sentido no passado são impossíveis de serem pensados e entendidos como viáveis no presente. Não conseguimos atualizar essas pessoas, não conseguimos acessar outras narrativas.

Ana Flávia nos lembra que 2018 marca também 30 anos da Constituição de 1988, a Constituição Cidadã. Esse foi um momento de intensa disputa: diversos grupos e indivíduos negros no Brasil colocaram em discussão formas do país fazer uma leitura sobre si, sobre seu presente, seu passado, seus diálogos com o continente africano e com outras populações negras na diáspora. É o momento de consolidação de uma série de organizações do movimento negro que conseguiu, inclusive, estabelecer um diálogo e um enfrentamento perante as instituições do Estado em defesa de direitos.

A recente historiografia brasileira sobre a população negra, especialmente a partir da década de 1980, tem estado bastante focada na chamada “agência escrava”, que Ana Flávia define como a demonstração de que seres humanos, por serem seres humanos, agiam como seres humanos. Para a historiadora, essa elucidação ser a principal agenda historiográfica em um país de maioria negra nos mostra a profundidade do racismo no Brasil. Fazendo um recorte arbitrário, o que intelectuais acadêmicos, ativistas, entre outros, têm feito é justamente marcar a presença, evidenciar – não só para especialistas – que a humanidade negra é um traço real e natural.

Ex África versus De África

Nesse sentido, a exposição Ex África tem como princípio evidenciar a contemporaneidade de experiências africanas, uma historicidade que é efetiva no presente e tem uma série de ressonâncias na forma como dialogamos com o passado – algo que precisamos enxergar. Fala-se muito em invisibilidade, mas ela não pode ser localizada no tempo. Ela deve ser elaborada em tudo aquilo que envolve o processo de construção histórica, pois é a partir dessa invisibilidade que pensar África e afro-brasileiros no currículo é um apêndice da história fundada na Europa. 

O desafio posto é, para além de incorporar uma série de conteúdos, reconhecer também a matriz de pensamento e a dinâmica cognitiva. Que as perguntas a serem feitas não passem simplesmente por “Onde estão os negros nesse momento? Eles estão aqui”, mas pensar formas que articulem narrativas muitas vezes conflitantes. Essas tensões são centrais.

Essa necessidade de demonstrar as múltiplas contemporaneidades das experiências africanas se relaciona a uma demanda construída no processo de luta contra o colonialismo, a segregação racial e por cidadania em escala global e transnacional. Nele, assistimos a um aprofundamento da articulação de sujeitos que pensam, em diferentes pontos do planeta, sobre os desdobramentos da existência africana e diaspórica. Tudo isso é problematizado pelos artistas que compõem a exposição. A despeito dos reveses, essa agitação tem se intensificado e pautado a educação, as artes, a televisão, o cinema, o mercado de trabalho, as relações internacionais, etc., mesmo que com resultados ainda não plenamente satisfatórios.

A partir dessa síntese, Ana convidou cada um a revisitar a exposição e tentar pensar em que medida ela supera essa estrutura mental – ou continua apenas a reproduzindo? Além disso, enquanto sujeitos, como lidamos com o conteúdo apresentado pela exposição? Conseguimos entender essa produção enquanto fragmento ou a vemos enquanto todo? Como conversar com estudantes sobre o que eles estão vendo? 

Pensar a multiplicidade dos artistas do continente africano é necessário, lembrando o tamanho de África. Temos contato com apenas um pequeno fragmento dessas representações, e é preciso lembrar a todo momento que, o que está para ser apreendido (e não descoberto) é amplo e instigante. Assim como as ressonâncias de África no Brasil. 

E por que falar tanto de Brasil? Porque, para a historiadora, invariavelmente, uma estratégia interessante para pensar a história global é justamente acessando histórias mais próximas. A aula sobre a história negra no Brasil é lida como uma chave para estimular o debate a partir do contato com as imagens de África que a exposição oferece.