O corpo de funcionários da Associação Niteroiense dos Deficientes Físicos (Andef), atuante na biblioteca do CCBB RJ, é composto por pessoas com deficiência intelectual e autistas, as quais prestam serviços de higienização e conservação dos livros do acervo. Como educadores do Programa CCBB Educativo – Arte & Educação, tivemos nosso primeiro contato com a Andef em abril de 2019, a partir de uma visita à exposição “Dreamworks: uma jornada do esboço à tela”. A partir dali, surgiu o desejo de um contato mais próximo. Depois de algumas reuniões, iniciamos um projeto de criação de objetos relacionais para visitas educativas e mediadas às exposições de longa duração que integram a programação do centro cultural, “Galeria de Valores” e “O Banco do Brasil e sua História”.
Desde então, teve início uma jornada de encontros e atividades organizadas sempre em conjunto com a coordenação da Andef, de modo que pudéssemos explorar diferentes linguagens e conhecer melhor os envolvidos. Para alcançar a diversidade dessas pessoas em seus modos de ver, comunicar e experimentar o mundo, assim como estabelecer uma troca satisfatória entre as equipes, um tempo alargado de trabalho se mostrou necessário, sendo dividido entre doze visitas.
No decorrer das atividades, o contato se tornou mais intenso, encontrando na Semana da Luta da Pessoa com Deficiência uma oportunidade de gerar visibilidade para o trabalho desenvolvido pela Andef e também de tornar pública a sua parceria com o Programa CCBB Educativo – Arte & Educação.
Começamos a pensar, em seguida, sobre como compor a agenda do dia do evento, assim como a nos atentamos para as origens esportivas da Andef. A partir dessas reflexões, levantamos a proposta de pensar o movimento e a expressão corporal em corpos mais diversos. Chegamos, então, ao grupo Corpo em Movimento, que reúne pessoas com e sem deficiência em espetáculos de dança. Após uma roda de conversa e uma visita à biblioteca do CCBB RJ, o espetáculo seria o ponto de culminância do nosso encontro.
Corpos catalogadores do mundo
Realizada em uma tarde de quinta-feira, a roda de conversa foi iniciada com uma apresentação institucional da Andef, perpassando seu trabalho no CCBB RJ e as constantes trocas de conhecimentos com a equipe do Programa CCBB Educativo. Nesta ação, apresentamos ao público as atividades desenvolvidas ao longo da parceria, dentre as quais dinâmicas de experimentação e reuniões entre os educadores e os funcionários da Andef, tendo como foco o desenvolvimento de princípios conceituais e práticos para a criação de um objeto relacional.
Pontuamos ainda que a colaboração tinha como intuito contribuir para a identificação do grupo da Andef como público do CCBB RJ, ressaltando o interesse e a importância de compartilhamos, de modo contínuo, vivências junto a pessoas com deficiência intelectual. A partir da criação de um espaço de fala e escuta, pudemos conhecer suas vontades e percepções sobre o uso do espaço, assim como perceber e refletir sobre os desafios e as potencialidades dessas pessoas dentro do mercado de trabalho.
Enfatizamos também a relevância dessa experiência para a atuação profissional dos funcionários da Andef, entendendo que a vivência e a experimentação de atividades artístico-pedagógicas como uma forma de ampliar suas possibilidades de atuação, ao ampliar repertórios e percepções visuais. A questão da desinstitucionalização está presente no mercado de trabalho como um todo, sendo muito comum que, quando empregadas, pessoas com deficiência fiquem extremamente restritas às suas funções e ambientes próprios, sem poder circular ou mesmo acessar outras atividades e programações de espaços que frequentam diariamente.
Em seguida, apresentamos os métodos escolhidos para conduzir nossas práticas, baseadas na capacidade de alguns objetos de despertar memórias afetivas em diferentes públicos. A partir de objetos capazes des provocar e carregar histórias e narrativas, pudemos, nesse sentido, acessar temas e conceitos presentes nas exposições, alcançando sentidos que vão muito além do apelo visual.
Entre os métodos utilizados para armazenar objetos e memórias dos referidos espaços, foram citados como exemplos o uso de pranchetas em visitas, assim como a criação de esculturas em porcelana fria, partindo de lembranças anteriormente acessadas nas exposições. A partir desse trabalho, podem surgir entendimentos sobre aspectos que geram interesse e ficam na memória de cada espaço, tornando-se possível perceber quais objetos de cada exposições se encaixam no campo de maior desejo e podem ser trazidos para a discussão como objetos relacionais.
Objetos rememoráveis
Como resultado destas criações e experimentações realizadas em colaboração com o grupo da Andef, assim como da catalogação de todo material, chegamos aos projetos escolhidos para orientar a produção dos objetos relacionais propostos para as exposições ‘Galeria de Valores’ e ‘O Banco do Brasil e sua história’.
Intitulado “Acervo Portátil”, o primeiro deles corresponde a uma coleção de pingentes apresentados em um suporte com forma de chaveiro, representando objetos do cotidiano e considerando, nesse conjunto, objetos de uso, objetos de troca e também outros, de valor meramente simbólico.Produzidos a partir do mesmo material tridimensional e resistente ao toque, os pingentes e o suporte formam um conjunto que permite aos educadores e educadoras carregarem o objeto durante as visitas. Em função das narrativas de cada visita, assim como das diferentes demandas e interesses de cada grupo, os pingentes podem ser retirados do suporte e ou ainda reorganizados. Entre os itens escolhidos para figurar entre os pingentes, elementos diversos como um peixe, um búzio, uma bala, um diamante, uma chave antiga, uma moeda, um cofre de porquinho, um coração, um peso de balança, uma cruz, um arco e flecha, um livro, um relógio, uma pena, cana de açúcar, uma câmera antiga, uma casa, um telefone celular e um grão de cacau.
O segundo objeto, inicialmente mais simples, consiste em uma ‘Caixa de Trocas’. Com dimensões de 40 x 20 centímetros, apoiada sobre um eixo rotatório e trazendo ainda duas pequenas portas nos lados, a estrutura permite que duas pessoas introduzam pequenos objetos dentro da caixa, estabelecendo surpreendentes trocas orientadas por indicações da equipe do programa educativo.
Também ao longo da conversa, foram apresentados alguns protótipos feitos pelos funcionários usando porcelana fria, servindo como inspiração para a escolha dos objetos. Em sua continuidade, a ação se desdobrou em uma visita mediada à biblioteca do CCBB RJ, onde pudemos conhecer o trabalho de conservação realizado pela equipe da Andef. Além disso, pudemos conhecer também os criadores dos objetos e das narrativas antes citadas, assim como visualizar alguns procedimentos relacionados à conservação e à higienização de livros.
Os corpos ao redor
Finalmente, como arremate da atividade, fomos juntos até a sala de teatro, onde pudemos assistir a uma apresentação do grupo de dança inclusiva Corpo em Movimento. A partir do espetáculo “Sensorium”, o grupo nos fez sentir nossos corpos em suas diferenças e semelhanças, além de perceber que sempre somos muito mais do que os outros acreditam que somos e podemos. Em cena, a partir de estímulos sensoriais, os dançarinos e dançarinas buscam evidenciar as múltiplas potências da dança num grupo que mistura pessoas com e sem deficiência.
Trazendo à tona sensações e sentimentos como superação, empatia e persistência, o espetáculo nos apresentou uma diversidade de corpos que refletem a inclusão, a luta pelo fim do preconceito e dos estereótipos associados às pessoas com deficiência. De igual modo, nos estimulou a buscar novas formas de enxergarmos os especificidades de cada corpo, elegendo sobretudo o respeito como caminho para essa importante tarefa.