Durante os anos de formação, o ambiente escolar se torna uma extensão da vida. É o lugar onde se estabelecem as primeiras relações de amizade, a convivência com uma hierarquia não centrada nas figuras familiares e ainda o contato com diferentes áreas do conhecimento, até então inéditas para crianças e adolescentes. Essa fase, compreendida dos 4 aos 17 anos, inevitavelmente culmina em uma série de descobertas determinantes para a vida adulta e pode, em alguns casos, ter um significado perverso para o estudante que sofre algum tipo de trauma. No caso dos meninos, especificamente, esses traumas costumam estar relacionados à construção da masculinidade, não raro estimulada com muita intensidade e frequência no contexto escolar.
“Do ponto de vista social, o sistema escolar pode ser um tanto quanto impiedoso. A grande maioria de nós, e principalmente aqueles que fazem parte de alguma minoria social passa por grandes traumas na escola. Isso acontece porque se trata, ainda, de um ambiente que reproduz muito do passado e peca ao não refletir sobre isso junto aos alunos e educadores”, analisa o professor Caio César, convidado da edição de setembro de 2019 do curso Transversalidades, dentro do Programa CCBB Educativo – Arte & Educação.
Integrante do Projeto Memoh (anagrama da palavra homem), criado com o propósito de promover a equidade de gênero e provocar os homens a refletirem sobre seus modos de agir consigo, com os outros e com a sociedade, Caio explica que o atual padrão de masculinidade corresponde a uma construção baseada na ideia hegemônica do que é “ser homem”. “O ‘homem de verdade’ é branco, heterossexual, forte, másculo, rico, pegador, não chora e não demonstra sentimentos. Quanto mais próximo das características dominantes ele estiver, mais homem será considerado. Entretanto, a gente esquece que os homens não são todos iguais. Podemos destacar, por exemplo, recortes de classe, raça e orientação sexual”, explica.
O professor destaca que o ambiente escolar já reproduz as regras sociais da masculinidade ainda nos primeiros anos de formação, quando priva as crianças da convivência com figuras masculinas. “A pouquíssima presença de homens nas fases iniciais da escola significa que o sistema escolar e também a sociedade legitimam a ideia de que o cuidado com crianças de até nove anos deve ser feito somente por mulheres, uma vez que elas possuem, ‘naturalmente’, o instinto maternal. O trabalho realizado pelas professoras, nessa fase, não é só o de lecionar, mas envolve todo um cuidado afetivo. Isso se torna uma grande questão para os meninos, que crescem sem a presença masculina aliada a esse afeto”.
No Memoh, Caio César participa de grupos reflexivos, produz conteúdo para mídias digitais e presta serviços de consultoria, sempre com foco na discussão sobre masculinidade. Nas salas de aula, como a grade curricular não possui brechas para atividades extras de longa duração, ele busca aproveitar as oportunidades que tem para levantar essas discussões entre os alunos. “Esse tipo de assunto precisa estar sempre inserido no ambiente escolar, principalmente com os meninos. Eles estão nessa fase de zoação e muitas vezes adotam uma conduta machista e intolerante, seja entre eles ou até com as meninas. Existem inúmeras motivações que justificam isso, mas o fato de eles não terem exemplos de uma masculinidade que não seja tóxica ou baseada na violência é o principal”, garante.
Discussão necessária
Quando, mais tarde, os adolescentes passam à universidade, é comum que entrem em contato com discussões sobre os padrões de gênero. Caio César defende, entretanto, que esse assunto deveria estar diluído ao longo de todo o período de formação. “Conversar sobre isso nos leva a perceber como a construção da masculinidade, tal como a conhecemos, é coletiva e aparece nas relações entre os homens. Se eu não chegar na aula e trouxer esse debate, os estudantes raramente terão oportunidade de discutir isso de forma saudável e aberta.”
Ainda a esse respeito, ele entende que também os professores precisam rever a própria conduta. Quando está em sala de aula, Caio César diz ser bastante objetivo em relação às regras que devem ser seguidas: não são admitidas, ali, brincadeiras ofensivas entre os alunos. O professor conta, por outro lado, que alguns de seus colegas de profissão ainda endossam as “brincadeiras” entre os alunos, o que acaba por legitimar o comportamento dos típicos “valentões”. “Às vezes eu percebo que alguns professores esquecem o peso da influência que carregam em relação ao aluno. Se ele debocha do aluno, está validando a violência que isso exerce sobre as crianças e os adolescentes”, analisa.
Em sua visão, detectar atitudes associadas ao bullying também é uma forma de combater a discriminação dentro da sala de aula, tendo em mente que professores e professoras estão lidando com pessoas em formação. “Quando comecei a dar aulas, ainda bastante jovem, enfrentei algumas situações que foram bastante complicadas para mim, como presenciar um aluno usando palavras racistas para ofender outro. No começo, quando eu ainda não sabia lidar diretamente com isso, minha atitude foi ficar com muita raiva. Com o tempo, fui entendendo que esse não era o melhor caminho e passei para o diálogo. É interessante notar que, das vezes em que interpelei a atitude de um aluno e expliquei as implicações que ela trazia, ele entendeu muito rápido”, conta.
Apesar dos esforços em trazer para dentro da sala de aula discussões que podem ajudar na ressignificação dos padrões de comportamento dos alunos, Caio César reconhece que são raros os professores homens que assumem a mesma postura. Por conta disso, um de seus planos futuros é levar o Projeto Memoh para dentro das escolas. Atualmente, o trabalho do grupo acolhe homens entre 18 e 70 anos para rodas de conversa em grupos fechados de até 20 pessoas. “Meu objetivo é fazer um Projeto Memoh Educação, com ciclos de conversa em escolas, só com os meninos. É uma ideia que ainda está engatinhando, mas prezo muito por ela. O ideal é que a escola tenha um projeto continuado”, defende.