Apontado como o segundo maior bioma do território brasileiro, o cerrado se estende por onze estados dos país, atribuindo a eles uma paisagem tipicamente caracterizada por árvores retorcidas e espaçadas, em meio a uma ampla biodiversidade ainda pouco conhecida por boa parte de seus habitantes. Bastante conservado até os anos 1960, quando a chamada modernidade alcançou o centro do território nacional, o mesmo bioma tem, nas últimas décadas, sofrido significativa degradação, causada sobretudo pelo crescimento da atividade pecuária e das monoculturas que, sem muita cerimônia, vêm progressivamente alterando a paisagem do país.

Pois foi na pequena cidade de Planaltina, situada no Distrito Federal, que o professor Flávio Paulo Pereira, mais conhecido como Mestre Pau Pereira, concebeu ainda na virada do século o ABCerrado, original método de letramento que toma justamente como referência a biodiversidade do cerrado brasileiro. Conhecido e praticado já há algumas décadas pelos estudantes de Planaltina, o ABCerrado fez, em julho de 2018, uma breve visita aos jardins do CCBB Brasília, quando seu criador e principal disseminador integrou mais uma edição do Múltiplo Ancestral.

“Na escola onde eu trabalho, a gente costuma levar as crianças para o ambiente natural, para o próprio cerrado, saindo um pouco de dentro do prédio e até mesmo da cidade. No caso dessa atividade, a gente teve que levar o cerrado até as crianças”, compara Pau Pereira, também mestre de capoeira e pai de três filhos, que já acumula trinta anos de experiência com educação infantil, sendo vinte deles dedicados à educação pública na zona rural de Planaltina.

Sendo ainda poeta, desenhista, escultor, pintor e músico, o professor ofereceu às crianças e adultos presentes um amplo leque de atividades, muitas delas voltadas também aqueles que já sabem ler e escrever. Diante de um grupo formado por crianças com idades entre cinco e oito anos, ali acompanhadas por suas mães e pais, o artista combinou variados recursos para abordar o cerrado brasileiro. “A gente trabalha com palavras e textos, mas também desenhos e até mesmo riscos. No caso das pessoas que se julgam letradas, exploramos a linguagem a partir de metáforas, trocadilhos, rimas, lendas locais e algumas composições do ABCerrado”.

Contextual

Mesmo trabalhando num contexto distinto daquele com o qual está acostumado a trabalhar, o artista e educador defende a potência da atividade realizada em Brasília, dessa vez voltada a famílias da capital nacional. “Seja onde for, as pessoas geralmente aprendem a ler e escrever com E de elefante, G de girafa e U de urso, mesmo que esses animais estejam em outros continentes e hemisférios. As crianças de hoje em dia acabam sendo muito cosmopolitas, apesar de muitas vezes não conhecerem os ambientes ao redor. Mas se você estimula essas crianças com arte, dança e música, elas certamente vão responder”, defende.

Frequentemente indagado sobre as aproximações entre o ABCerrado e a obra do pedagogo e filósofo Paulo Freire, Pau Pereira reconhece possíveis semelhanças, mas esclarece ter desenvolvido suas práticas antes mesmo de ter contato com a produção do pernambucano. “Muitas vezes as pessoas vêm me falar sobre a pedagogia do oprimido, mas a chave dessas práticas está justamente na ideia de trabalhar a partir de elementos do ambiente imediato de cada um. Se você vai alfabetizar num canteiro de obras, por exemplo, é natural trazer A de arame, B de botina, C de carrinho”.

Ainda que o ABCerrado tenha, de fato, um papel importante em suas práticas, Pau Pereira destaca a permanente abertura a colaborações e questões trazidas pelas próprias crianças durante as atividades. “Minha ideia nunca é dar um conteúdo pronto, mas trazer interrogações e estimular as crianças a fazerem perguntas. Por conta disso, trabalhamos sempre com objetos que não são de plástico, e nem tão coloridos quanto os que estamos acostumados”, descreve o professor.

Entre os objetos utilizados durante a atividade, figuram, por exemplo, algumas esculturas de madeira produzidas pelo próprio artista, fazendo referência a outra atividade desenvolvida nas aulas que oferece em Planaltina: a coleta de matéria morta do Cerrado para a construção de brinquedos, móveis e até mesmo instrumentos de capoeira. “No fim das contas, o que me interessa é brincar, imaginar e estimular nessas crianças um pensamento livre e questionador”, sintetiza.

Imagem: Equipe do Programa CCBB Educativo – Arte & Educação. 

Ação realizada no dia 29 de julho de 2018, em Brasília (DF), como parte do Programa CCBB Educativo – Arte & Educação. Com periodicidade mensal, o Múltiplo Ancestral é uma plataforma de trocas entre o público e as mestras e mestres ligados a diferentes saberes e práticas culturais, articulando a memória e o patrimônio. Alia a tradição oral, o afeto e olhares sobre o material e imaterial, fortalecendo a relação do sujeito com a diversidade.