O que nossos acervos falam sobre nós? Para responder a essa pergunta e despertar outras, convidamos o professor, curador e artista Claudinei Roberto da Silva para o encontro Transversalidades de julho de 2021. Ao investigar os diálogos possíveis entre os museus e seus públicos, o convidado destacou a importância vital dos museus enquanto equipamentos de educação e formação cidadã, observando especialmente o que eles têm a nos dizer a partir de seus acervos.
Buscando, logo de início, equalizar as múltiplas vozes que atravessam os acervos e os objetos que os integram, Claudinei nos apresentou o conceito de Griot: um termo que evoca seu próprio acervo como sujeito. Na África Ocidental, os griots – ou griôs (como aparece por vezes na língua portuguesa) – são os indivíduos capazes de nos presentear com conhecimentos sobre os costumes, os saberes, os mitos e as histórias dos povos. São esses indivíduos que perpetuam a própria ancestralidade a partir da memória e representam, portanto, a importância de garantir a continuidade das tradições por meio do saber oral.
Ao longo deste Transversalidades, Claudinei Roberto da Silva reivindicou sua herança ancestral. Fazendo referência a um projeto realizado no Museu Afro Brasil pelo músico e arte educador congolês Wasawulua Daniel, o professor nos convidou a sentar aos pés do baobá e ouvir algumas reflexões que permeiam discursos e imaginários materializados nos acervos, enquadrando o que somos, fomos ou seremos enquanto povos brasileiros. Voltando-se de modo especial aos ensinamentos a oralidade e o silêncio podem nos trazer, somos convidados a retornar a ideias que o historiador francês Jacques Le Goff defende no livro “História e Memória”, de 1988.
“Falar dos silêncios da historiografia tradicional não basta; penso que é preciso ir mais longe: questionar a documentação histórica, interrogar-se sobre os esquecimentos, os hiatos, os espaços em branco da história. Devemos fazer o inventário dos arquivos do silêncio e fazer a história a partir dos documentos e da ausência de documentos”
Cabem porcos em palácios?
A primeira história contada por Claudinei vem de suas relações com a cidade de São Paulo durante a adolescência, vivida no fim dos anos 1970. Morando, à época, na periferia da cidade, Claudinei trabalhava como office-boy numa região próxima ao prédio da Pinacoteca do estado, sem entender muito bem o que acontecia naquele palácio arquitetado por Ramos de Azevedo.
Aos seus olhos daquela época, o prédio carregava tamanha imponência que não parecia convidativo a ele e seus pares sociais. Um ato de coragem, entretanto, o levou a adentrar às galerias da Pinacoteca. As pinturas que ali estavam o deixaram maravilhado, sugerindo à sua imaginação que aquela era a casa do suprassumo da cultura.
Essa visão, contudo, se manteve somente até o momento em que ele se deparou com a obra “O porco” (1966), do artista brasileiro Nelson Leirner. Constituída por um porco empalhado dentro de um engradado de madeira, a obra o deixou extremamente confuso, sem entender muito bem como um trabalho como aquele poderia estar no meio de tantas coisas que havia nomeado como “sofisticadas”.
Destacando ainda a dificuldade de descrever aquela experiência, Claudinei contou ter se sentido extremamente excluído frente ao inesperado encontro com a obra de Leirner: mesmo tendo entendido, àquela altura, a possibilidade de acessar o edifício, naquele instante se impunha a dificuldade de lidar com o espaço e o patrimônio ali salvaguardado.
“Achar bonito não é entender, tampouco achar feio”
Claudinei nos contou ter retornado ao mesmo acervo tempos depois, trazendo na cabeça, contudo, um pensamento do artista Waltercio Caldas: “achar bonito não é entender, tampouco achar feio”. Partiu, então, em busca da legenda daquela mesma obra, e identificou que ela havia sido criada em pleno regime ditatorial.
Essa informação o instigou a ler as legendas de outras obras que também dialogavam com o mesmo momento histórico. Nessa busca, encontrou uma das cabeças trágicas de Ivan Serpa, uma das bananas torturadas de Antonio Henrique Amaral e uma série de outros trabalhos que, de diferentes maneiras, se aproximavam do tal porco. A partir desse olhar mais atento e preparado, Claudinei foi capaz de ressignificar sua relação com o espaço museal e, em especial, com a obra de Leirner.
Ao compartilhar essa experiência pessoal, Claudinei destaca que alguns acervos podem nos falar sobre coisas que não nos atravessam de primeira – e que, nesses casos, pode ser necessário revisitar os mesmos espaços mais tarde, trazendo conosco novas experiências e interpretações do mundo.
O que essas pinturas têm em comum?
Para ilustrar esse permanente processo de reescritura de sentidos e narrativas patrimoniais, o convidado nos apresentou algumas pinturas produzidas entre 1890 e 1910. Diante dessas imagens, o professor nos convidou a pensar sobre como a ação do tempo pode pôr em evidência discursos não necessariamente vinculados às obras em seus contextos de origem.
A primeira obra se chama “Cena de família de Adolfo Augusto Pinto”, de 1891. Criada pelo pintor José Ferraz de Almeida Júnior, retrata uma típica familia burguesa do fim do século XIX: em primeiro plano está o “chefe” da familia, acompanhado por um grupo de crianças que brincam com um bebê negro e por uma mulher que ensina a uma criança mais velha alguma técnica de bordado. Claudinei nos instiga a perceber, entretanto, que além de todas essas pessoas, existe na mesma cena uma boneca vestida de azul.
Essa boneca é muito parecida com outra, que aparece na pintura “Maternidade”, de Eliseu D’Angelo Visconti. Nessa imagem de 1906, são representadas três integrantes de uma outra família: pelas vestimentas das personagens, podemos entender que também ocupam um lugar de privilégio na estrutura social da época. Nessa pintura, observamos que uma das crianças brinca com uma boneca cujos trajes são tão opulentos quanto os da família que vemos em cena.
O convidado nos mostra ainda a obra “Fascinação”, de 1904. Criada por Pedro Peres, a pintura coincidentemente (ou não) traz uma boneca vestida de azul. Dessa vez, contudo, a boneca está acompanhada por uma menina de pele negra. A menina usa roupas simples, está descalça e é apresentada em pé, com uma linguagem corporal que denuncia cansaço. Enquanto isso, a boneca de cabelos loiros está com roupas suntuosas, usa meias e sapatos e está sentada confortavelmente numa cadeira.
Ainda que integrem o acervo de uma mesma exposição e tenham como traço comum a presença das bonecas, as três imagens selecionadas pelo convidado são potencializadas uma pela outra e ganham, juntas, uma potência que não teriam caso estivessem isoladas.
Além disso, destaca Claudinei, também a passagem do tempo nos ajuda a ver detalhes não necessariamente contidos na intenção dos artistas e dificilmente percebidos durante uma apreciação isolada das obras. Quando observamos, por exemplo, os detalhes da obra “Fascinação”, temos uma nítida descrição dos papéis raciais dentro do contexto brasileiro, denunciando uma série de problemas e debates que engendram as relações sociais contemporâneas.
Modernismo e Brasilidade
A partir dessa análise, o convidado nos conduz a uma reflexão sobre o enredo histórico que geralmente marca a descrição estética e cultural da brasilidade a partir do movimento modernista brasileiro. A esse respeito, evidencia que artistas negros como Arthur Timóteo da Costa e Lima Barreto, apesar de estarem presentes e alinhados com os pressupostos do movimento, não são comumente incluídos no panteão de artistas que representam o modernismo.
Mais adiante, somos convidados a examinar as obras “Lavrador de Café” e “Mestiço”, ambas criadas pelo artista Cândido Portinari durante o período do Estado Novo. Considerando esse contexto histórico, Claudinei observa que as obras contribuem para a consolidação da imagem de um corpo prototípico brasileiro.
Na visão do professor, essas imagens projetam simbolicamente poderes e estruturas sociais, atribuindo à arte uma função de representação que nos diz tanto sobre a hierarquização dos papéis sociais em sua gênese racial quanto sobre noções de progresso associadas à exaustão da terra e daqueles que trabalham nela.
Todas essas relações entre o movimento modernista e a construção estética e política da brasilidade, aliás, nos convidam a refletir sobre o que, de fato, seria essa brasilidade. De um lado, a maior parte da população brasileira é formada por mulheres negras. De outro, ao olharmos para os nomes que constituem os acervos e os movimentos mais conhecidos dessa tal brasilidade, ainda carecemos de visibilidade para as narrativas e o protagonismo dessas mulheres.
Diante de tudo o que conversamos, percebemos que é necessário ouvir e reivindicar o que nos dizem os silêncios que ecoam nos acervos, assim como reconhecer o hibridismo que muitas obras atingem ao se confrontarem com a realidade das relações sociais construídas fora das instituições culturais.
Do silêncio à denúncia
Concluímos esse momento observando o trabalho “Nossa Senhora das Dores”, criado aproximadamente em 1791 pelo artista Antônio Francisco Lisboa, mais conhecido como Aleijadinho. Integrante do acervo do Museu de Arte Sacra de São Paulo, a obra reflete não somente seu sentido óbvio, em órbita da religiosidade, mas também a dor de uma mãe que encara a morte e sofrimento de seu filho – cena cotidiana aos povos escravizados no Brasil durante o mesmo período.
Tragicamente, aliás, estatísticas recentes mapearam que a cada 20 minutos um jovem negro morre em uma periferia brasileira. Constituída em torno de aspectos estruturais que até hoje refletem em nossa sociedade, a obra se atualiza de modo contundente à medida que a mesma cena segue sendo experienciada por milhares de mães brasileiras – não necessariamente dentro de um espaço cultural, mas visceralmente, em suas próprias trajetórias de vida.
Ao final do encontro, percebemos que a experiência compartilhada por Claudinei – sobre o que lhe diziam a arquitetura e acervo da Pinacoteca de São Paulo nos longínquos anos 1970 – nos convida, hoje em dia, a expandir nossa atenção sobre os discursos que silenciam – ou ecoam – o que somos quando encaramos acervos. E ao mesmo tempo em que convoca nossa atenção, Claudinei nos convida a ter coragem de ocupar, observar e revisitar aquilo que não necessariamente é percebido num primeiro olhar, mas que o tempo sempre pode se encarregar de desvendar.