“Tenho interesse total, quase obsessão pelas histórias do cotidiano, do dia a dia, fora das narrativas grandiloquentes, heróicas, arquitetônicas, projetuais. A história dos “praticantes ordinários”, em seu “corpo a corpo amoroso com a cidade” (…). A cidade tática, que é diferente da cidade estratégica. A cidade dos desvios para um café com alguém encontrado na rua, das brechas, das interrupções, dos tropeços. São narrativas que se perdem no tempo e quase nunca são registradas.” As cidades vêm ficando cada vez mais agressivas e menos abertas aos atalhos … Especialmente as latino americanas, minha grande paixão.”
Quem diz essas palavras é a artista e pesquisadora Vânia Medeiros, convidada a conduzir a edição de agosto do curso Processos Compartilhados, dentro do Programa CCBB Educativo – Arte & Educação. Realizada em uma tarde de sexta feira, a atividade reuniu artistas, educadorxs sociais e professorxs da rede pública e privada. No total foram 13 participantes, entre alguns que já conheciam o trabalho da artista e outrxs que procuravam maior proximidade com processos criativos no campo da arte e educação.
Em linhas gerais, a artista trouxe inúmeras referências de diferentes áreas do conhecimento, propondo uma experiência bastante rica e interdisciplinar ao dialogar com teóricxs das esferas da antropologia, arquitetura, geografia, arte e educação, dentre os quais o antropólogo Michael Taussig, o historiador Michel de Certeau, xs arquitetxs Sérgio Ferro e Paola Berenstein e xs artistas Amilcar Packer, Mônica Hoff e Pablo Helguera.
No primeiro momento, além de compartilhar um breve resumo a respeito de sua formação acadêmica de forma a contextualizar sua produção, a artista apresentou dois dos seus principais trabalhos, “Cadernos de Campo” e “Cuadernos de Medellín”. Fazendo referência à formação em jornalismo, Vânia trouxe lembranças de processos que a motivaram a produzir publicações a partir de processos artísticos, sobretudo relacionadas ao desenho. Com o passar do tempo, o interesse da artista foi se direcionando a observações sobre a função dos cadernos como espaços de registro, reflexão e memória, ao longo de processos que consideram, em suas próprias palavras, “ser o caderno uma extensão do próprio corpo”.
Caderno de Campo & Cuaderno de Medellín
“Foi interessante o trabalho de desenhar. No começo, achava que não ia conseguir participar, porque eu chego muito cansado no final do dia. Mas, quando começou, gostei dos encontros, do momento, do café, das conversas… Era um trabalho, mas, ao mesmo tempo, era engraçado. Eu não sabia que o trabalho que eu fazia poderia despertar o interesse de alguém. Ainda mais para fazer um livro com as coisas que eu faço. Isso me chamou atenção, e resolvi desenhar todos os dias. Eu até esquecia o cansaço à noite.”
Adauto de Oliveira Santos, natural de Itaberaba (BA)
Em “Caderno de Campo”, Vânia Medeiros propõe processos colaborativos com trabalhadores da construção civil, em São Paulo, e profissionais do sexo, em Salvador. O trabalho parte de um convite a sete profissionais de cada área a desenhar, em cadernos, suas rotinas de trabalho durante o período de um mês. A artista conta que os participantes foram orientados a desenhar em suas próprias casas, ao final das jornadas diárias de trabalho, e participaram ainda de quatro reuniões semanais de partilha e discussão dos desenhos realizados.
Por cada hora de encontro com a artista, colaboradores e colaboradoras ganharam o equivalente à sua remuneração por hora de trabalho, baseando-se em tabelas sindicais, no caso da construção civil, e em entrevistas pessoais, no caso das prostitutas. O primeiro processo foi subsidiado pelo Contracondutas, plataforma de apoio a projetos de arte que discutem trabalho análogo ao escravo na construção civil, e culminou, em 2017, na publicação de um livro com desenhos e depoimentos dos participantes.. No ano seguinte, o mesmo processo foi realizado de modo independente com prostitutas da capital baiana.Por este trabalho, Vânia foi indicada ao prêmio Select de arte e educação em 2017 e 2018.
“Cuadernos de Medellín”, por sua vez, tem origem num processo de coleta, criação e sistematização de micronarrativas do cotidiano da cidade de Medellín, na Colômbia, desta vez percebidas e contadas exclusivamente por mulheres. A primeira parte do processo foi realizada em agosto de 2018, durante a residência artística Platohedro, e se deu com a participação de nove colaboradoras, reunidas a partir de uma convocatória aberta. Durante o mês de trabalho, a pesquisadora e curadora colombiana Maria Catarina Duncan atuou como interlocutora do processo, baseado em derivas pela cidade. Em colaboração com Maria Catarina, foi construída uma publicação a partir das interações entre o grupo e Vânia, considerando ainda aspectos pessoais de sua experiência enquanto artista residente.
Caminhadas pela cidade
Após a exposição dos dois projetos de pesquisa da artista, Vânia orientou o grupo na confecção de cadernos artesanais que serviriam como suporte para registros feitos a partir de uma caminhada no centro de São Paulo. Inspirada no texto “Teoria da Deriva”, de Guy Debord, a convidada propôs ao grupo que realizasse uma deriva pelas ruas do entorno do prédio, em uma prática semelhante à que havia se dado em Medellín.
Nesse exercício, xs participantes deveriam andar pelas vias observando pessoas e espaços, em um movimento de captar o banal, o cotidiano, a efemeridade dos lugares e do próprio tempo, apontados pela artista como objetos de sua pesquisa. Vânia orientou-os ainda a escolher uma ou mais transeuntes para inspirar um desenho de observação, assim como a criação de uma narrativa ficcional para cada pessoa escolhida. Durante o exercício, xs integrantes também foram estimuladxs a recolher alguma materialidade das ruas: uma pedra, uma bituca de cigarro, um pedaço de papel, enfim, algum vestígio do trajeto percorrido.
Depois de retornar da imersão pelos arredores do prédio, cada participante compartilhou com o grupo diferentes aspectos do processo de itinerância: suas percepções sobre o cotidiano, o que sentiram, o que observaram, o perfil dxs demais caminhantes, o ritmo da cidade, suas cores, cheiros, frestas e formas.
A partir das falas trazidas à roda, o processo pareceu se aproximar das etnografias realizadas por estudantes e profissionais de antropologia, chamando atenção às diferentes práticas, jeitos e costumes sociais, assim como à compreensão de dinâmicas que culminam na criação e vivência de diferentes culturas. Observar a cidade e conhecer a cultura em torno dela assim como Baudelaire no século XIX identificava o estilo moderno dxs cidadãos parisienses por meio do flâneur.
Entre as múltiplas questões que emergiram do processo de deriva dxs participantes, algumas podem ser destacadas: a ocupação do espaço público pelas mulheres, considerando como seus corpos reagem, de que maneiras habitam e experimentam a cidade; a intensa presença de pessoas em situação de rua no centro de São Paulo, e o trabalho da guarda civil metropolitana e de agentes da assistência social junto a essa população de rua; a constante limpeza das ruas centrais, atrelada ao trabalho dos agentes de limpeza da prefeitura, em comparação à falta do serviço nas áreas periféricas da cidade; e, finalmente, a postura atenta e rígida dxs seguranças patrimoniais nos prédios do entorno.
Leitura de Runas
Vânia Medeiros orientou os integrantes do grupo a registrarem, por meio de desenhos, os trajetos feitos pelas ruas. Pediu, então, que eles apresentassem os resíduos coletados durante os trajetos e dessem um significado a cada um deles, convertendo-os em “runas”, em referência a uma linguagem mística que traz em seu significado magia e importantes profecias.
Uma das runas, por exemplo, era um ramo que continha sete folhas, e fazia menção ao trevo de quatro folhas, que representa a sorte. Para a leitura dessa runa, haviam dois desenhos distintos que abrangiam quatro folhas e traziam um significado positivo, atrelado à sorte. O restante das três folhas simbolizava percalços pelos quais a pessoa poderia passar para alcançar o sucesso. A partir dessas alegorias, o grupo passou a criar algumas previsões a partir de perguntas lançadas pelos participantes.
Uma delas se referia a um convite de trabalho recebido por uma das integrantes. De olhos fechados, a participante escolhia três runas de onze enfileiradas no chão, e então apresentava seu problema ou questionamento ao grupo. A primeira runa estabelecia uma relação com o passado, a segunda, com o presente, e a terceira, com o futuro, sendo que a síntese desses três elementos resultava em uma espécie de direcionamento para a questão trazida à roda.
O processo nitidamente serviu para que os integrantes do grupo se aproximasse ainda mais, e coletivamente encontrassem soluções e respostas para questões individuais. Algo bastante sensível e necessário em meio a grandes metrópoles como São Paulo, onde há um individualismo crescente, frivolidade diante das relações e sofrimentos humanos e pouco olhar e escuta com xs outrxs.