As mazelas sociais brasileiras parecem tender à perenidade, cultivadas por um sistema eficaz e longevo de manutenção de desigualdades que se tornam palpáveis nas medições que caracterizam índices como a distribuição de renda, os assassinatos transexuais, dentre outras barbáries. Os conflitos étnicos sequer recebem este nome, mas fazem vítimas na população indígena, e com fervor dentre jovens negros, de forma surda e constante. Minha cidade de nascimento, São Paulo, cresce com a fome que apenas o apetite das megalópoles de nosso tempo consegue entender, se espalhando em belezas e tragédias cotidianas, sem nunca se saciar. As assimetrias não se restringem à divisão da produção estritamente econômica e das oportunidades de trabalho, mas também às posições de acesso aos direitos sociais, aí incluída a participação nos circuitos de fruição, produção e apropriação de práticas e bens simbólicos. A franquia dos direitos culturais por parte da população também se apresenta discrepante e, aqui, compreendemos ser a arte-educação fundamental para os garantir.

É a combinação complementar das formas de desequilíbrio na apropriação do capital econômico, do capital social e do capital cultural que resulta na maior ou menor vulnerabilidade nas condições de vida e realização humana dos sujeitos e comunidades que compõem o tecido societário. O Estado tem um papel a assumir na redistribuição do capital cultural acumulado pela sociedade e de democratização dos espaços e meios de produção cultural, de forma a garantir a todos o acesso qualificado, permanente e sistemático aos circuitos de mediação e produção de cultura. Os direitos culturais são, de forma indissociada, parte constitutiva (e não acessória) dos direitos humanos. Nessa perspectiva, a cultura deve ser reconhecida como fator de entendimento de questões contemporâneas como as identidades, a coesão social e o desenvolvimento de economias fundadas nos múltiplos saberes presentes na diversidade dos grupos sociais. 

Por essas razões é imperioso favorecer o intercâmbio de conhecimentos e de práticas facilitando a inclusão e a participação de pessoas e grupos advindos de horizontes culturais variados, reconhecendo serem as identidades plurais, variadas e dinâmicas, com especial atenção aos que apresentam fatores de vulnerabilidade mais evidentes. São essas as populações que mais sofrem com a negação de direitos e com a exclusão ou marginalização no que tange à sua participação nos circuitos de produção, mediação e circulação cultural institucionalizada.

A conciliação dos conceitos de democratização do acesso à cultura e de democracia cultural possibilita estabelecer modelos participativos que dependam do compartilhamento de conhecimentos e reconheçam os indivíduos como sujeitos ativos capazes de contribuir com a busca de soluções que atendam às suas necessidades, abrir canais de diálogo e empoderar pessoas com habilidades e confiança para que tomem suas próprias decisões no campo das artes. Isso significa ir além da noção de “democratização da cultura” entendida, em sentido estrito, como processos que visam a dar acesso aos produtos e bens simbólicos, assumindo a necessidade de criar e fortalecer a cidadania cultural em sua plenitude, no eixo de uma democracia cultural. Isso implica, além de garantir o acesso aos produtos e bens simbólicos, o acesso e o usufruto das condições de produção. Cria-se, então, uma via de duas mãos no que diz respeito aos critérios de escolha dos conteúdos culturais e também dos modos eleitos para pautar o relacionamento dos indivíduos com esses conteúdos. É essa educação, que existe em função da arte, o caminho mais promissor de instrumentalização do cidadão agente, criador e crítico.

Assumir uma perspectiva participativa e democrática significa reconhecer que os sujeitos e organizações que compõem o tecido societário materializam e engendram diferentes circuitos de produção e fruição cultural, e que é papel do Estado ampliar e consolidar condições objetivas de dinamização, fortalecimento e democratização desses circuitos através de ações de fomento, formação e articulação. 

A afirmação e a universalização dos direitos culturais podem dar sustentação efetiva a processos de compartilhamento solidário da produção simbólica dos grupos sociais que favoreçam o reconhecimento da alteridade como constitutiva do humano. 

São inspirações nessa direção documentos que traduzem a importância dos direitos culturais e do reconhecimento da diversidade para o desenvolvimento e o empoderamento das sociedades, tais como: a Declaração de Friburgo e a Declaração Universal sobre a Diversidade Cultural da Unesco. 

Toda pessoa, individualmente e em coletividade, tem o direito ao acesso e à livre participação da vida cultural,  através das atividades de sua escolha. Cada indivíduo deve poder gozar de:

  •    liberdade para expressar-se, em público ou em privado; 
  •   liberdade de exercer suas práticas culturais e prosseguir um modo de vida associado à valorização de seus recursos culturais;
  •   liberdade de desenvolver e de compartilhar conhecimentos, expressões culturais e de participar das diferentes formas de criação, bem como de seus benefícios;
  •   educação e formação que contribuam ao livre e pleno desenvolvimento da sua identidade cultural;
  •   participação no desenvolvimento cultural das comunidades das quais ele é membro.

O trabalho  alicerçado na cultura e na arte, voltado para a vida expressiva a partir de uma perspectiva contemporânea, deve conciliar duas dimensões: a valorização da produção cultural herdada e a perspectiva de criação contínua com o estímulo às vozes do presente que criam bases para as do futuro. Deve-se reconhecer que toda criação tem suas origens nas tradições culturais, porém se desenvolve plenamente em contato com outras. Por isso o patrimônio, em todas as suas formas, deve ser preservado, valorizado e transmitido às gerações futuras como testemunho da experiência e das aspirações humanas, a fim de nutrir a criatividade em toda a sua diversidade e estabelecer um verdadeiro diálogo entre as culturas.

Em 2021 o Instituto Moreira Salles realizou a exposição Carolina Maria de Jesus – um Brazil para Brasileiros, combinando as obras e a biografia da autora à produção de 60 artistas negros. A mostra, com essa estratégia, operou expondo violências múltiplas na voz desse conjunto de criadores, evidenciando a natureza brutal predominante em muitos aspectos da vida social do país. O conjunto exposto combinava o desejo de denúncia, comentário social, revisão histórica, e também homenagens a indivíduos que não receberam os esforços laudatórios que lhes seriam devidos. Como educadora e historiadora da arte, ao me deparar com o que pareceu surgir à flor da pele dos visitantes, me perguntei sobre como essa sensibilidade de hoje pode perpassar os processos de educação, em especial aqueles nutridos pela cultura e pela arte. Como investir na lucidez dos hoje alunos, futuros adultos, permitindo que mantenham perspectivas esperançosas, embora sejam capazes de ver com clareza a truculência que formou a nação e mantém ainda o status quo, que devem ser desejosos de transformar? 

No mesmo ano, a 34a Bienal Internacional de São Paulo adotou o tema Faz escuro mas eu canto, verso publicado, em 1965, pelo poeta amazonense Thiago de Mello, semelhante ao título do primeiro volume da autobiografia da escritora afro-americana Maya Angelou: I Know Why the Caged Bird Sings (Eu sei porque o pássaro canta na gaiola). Em ambos, a evocação do poético como necessidade diante da adversidade, do atroz, daquilo que parece impossível de ser superado. É possível imaginar que essas formulações apontam a importância da arte para que possamos cumprir a missão de nutrir uma educação capaz de estimular visões tão agudas quanto sensíveis.

As questões relacionadas à reflexão sobre a vida em comunidade, e a busca coletiva de soluções para diferenças e conflitos de interesses, vistos em escala global, local ou a partir de perspectivas subjetivas, parecem estar impressas no zeitgeist, palavra alemã que traduz a ideia do espírito de época. Olhando para a cena cultural brasileira, hoje, penso que a marca mais forte de nosso tempo, nesse sentido, é o reconhecimento da violência, seja a que nos rodeia e ameaça mais a alguns do que a outros, seja aquela que marcou a história, e que é agora denunciada, finalmente, ou que recebe novas ênfases, reposicionando narrativas na memória coletiva. Embora hoje as políticas culturais não assinalem essas questões como norte, elas se fazem presentes na atmosfera artística e cultural. Podemos insuflar nos jovens a utopia da convivência, mas muitos artistas parecem inclinados a tratar do que está implicado em ser “o outro” da sociedade, e manifestam plena consciência dos atritos, elementos que se combinam para moldar a sensibilidade cultural contemporânea brasileira.

Referências

BARBOSA, Ana Mae. Inquietações e mudanças no ensino da arte.São Paulo: Cortez Editora, 2018.

BOTELHO, Isaura. Democratização cultural. Desdobramentos de uma idéia. Blog acesso. São Paulo. Disponível em: http://www.blogacesso.com.br/?p=66. Acesso em: 20 jun. 2009. 

CHAUÍ, Marilena. Cidadania cultural, o direito à cultura. 1.ed. São Paulo: Editora Fundação Perseu Abramo, 2006.

LOPES, João Teixeira. Da democratização da cultura a um conceito e prática alternativos de democracia cultural. Saber & Educar [Em linha].n.14, 2009. . 

MARTINS, Democratização cultural. Um desafio a ser enfrentado. Blog acesso. São Paulo. Disponível em: http://www.blogacesso.com.br/?p=63. Acesso em: 20 jun. 2009.