Com a perspectiva do design contemporâneo, a edição de agosto do curso Transversalidades recebeu o designer Gérson de Oliveira. A apresentação teve início com um panorama da história universal do design, com ênfase no seu desenvolvimento em território brasileiro. Entre os participantes da conversa, havia professores, educadores sociais e estudantes de arte, arquitetura e design.
Após apresentar a concepção de mobiliário para espaços públicos como uma importante vertente do próprio trabalho, Gérson afirma este ponto de confluência como modo de abordar a obra de Athos Bulcão. Faz-se um recorte do que o designer considera uma das facetas mais importantes do trabalho do artista: sua colaboração com arquitetos. Para discutir a interseção entre o trabalho de Bulcão e a arquitetura, Gérson convidou os participantes do curso a visitarem a exposição, especialmente duas salas em que se explora importantes momentos e técnicas da azulejaria de Athos.
A utilização de azulejos na arquitetura brasileira é uma prática de cinco séculos, sendo esse um aspecto – ou ornamento – marcante de nossas edificações desde o período colonial. Em linhas gerais, os painéis de azulejos vinham de Portugal contendo composições já definidas , e eram aqui montados como um quebra-cabeças por quem os aplicava, de modo a criar cenas e imagens específicas, voltadas a espaços também específicos. Assim descreve o crítico de arquitetura André Correa do Lago, em um artigo sobre o trabalho de Athos utilizado por Gérson como uma das referências para a conversa.
Ao mesmo tempo que o artista resgata essa tradição histórica brasileira, ele cria uma nova forma de operação que transforma os processos de criação, fabricação e aplicação da azulejaria de modo radical, inserindo-os ou aproximando-os da realidade industrial já experimentada pelos brasileiros nos anos 1950. Ao invés de pensar longas e exaustivas cenas, em escala monumental, que, para serem aplicadas às paredes, precisavam se repartir em um grande número de azulejos diferentes (em geral manufaturados), ele entende esse formato enquanto um módulo, criando padrões geométricos e abstratos que poderiam ser aplicados infinitas vezes, justamente por não se esgotarem as possibilidades composicionais.
Quando passa para uma linguagem menos figurativa, Athos não está pensando apenas no resultado final, mas também no processo de colocação dos azulejos, eliminando a rigidez de seu projeto de aplicação sobre a arquitetura. A certa aleatoriedade prevista no desenho abstrato e geométrico abre espaço para que o operário participe da configuração da linguagem dos painéis, contribuição estimulada e muito valorizada pelo artista, justamente pela procura de outros equilíbrios formais. Gérson mostra aos participantes uma foto de Bulcão no canteiro de obras, possivelmente apenas instruindo um operário sobre o que não fazer.
A colaboração com arquitetos
O trabalho em azulejo de Athos Bulcão foi potencializado por sua relação de proximidade com alguns arquitetos, em especial Oscar Niemeyer e João Filgueiras Lima, o Lelé. Sua abordagem propositiva do processo de composição e fabricação criou um material ideal para ser aplicado no grande volume de produção arquitetônica do contexto brasileiro durante os governos de Juscelino Kubitscheck, com destaque para sua participação no projeto de edifícios públicos para Brasília.
O crítico Agnaldo Farias conta que a utilização do azulejo foi amplamente defendida por Lucio Costa, “principal teórico da nossa arquitetura moderna”, tanto por apresentar maior adequação, enquanto material, ao clima brasileiro, quanto por afirmar uma relação de continuidade entre a arquitetura moderna e a tradição histórica construtiva do Brasil.
Ao mesmo tempo, pensando na evolução tipológica das edificações entre o século XIX e o XX, Gérson destaca o uso das paredes com murais como uma estratégia interessante de reiteração da transição do eclético (e suas diversas variações brasileiras) ao moderno: a criação de painéis que cobriam as paredes por inteiro retirava delas a associação visual à função de apoio estrutural, levando-as à função de vedação. Enquanto a arquitetura do século XIX apresentava paredes que sustentavam o peso do telhado (de forma que delas dependia a estabilidade de toda a edificação), a arquitetura moderna entende que o edifício deveria ser estruturado a partir de uma malha tridimensional formada por pilares e vigas. A parede passa a ser um elemento utilizado para dividir espaços, para separar o ambiente interno do externo, ou seja, assume funções não mais estruturais, mas de construção da espacialidade.
Como escreve Agnaldo, “a função estrutural do edifício caberia de fato a quem de direito”. Athos não entendia seu trabalho como ornamentação, mas como um elemento de linguagem que evidenciava esse ponto importante aos arquitetos. Seu trabalho era uma prova, uma evidência, de que a parede agora estava solta.
A cidade como suporte para a arte
A dupla Niemeyer-Bulcão leva aos moradores de Brasília o encontro cotidiano com obras de Athos, muitas delas localizadas nas fachadas ou paredes externas dos edifícios públicos. Agnaldo Farias repara que a trajetória do artista foi “especialmente consagrada ao público em geral. Não ao público que frequenta museus e galerias, [mas aquele] que por acidente toma contato com sua obra; o transeunte, o passante, aquele que em princípio está desatento, porque coisa como arte não faz parte de seu repertório, e também porque ele de ordinário está distraído de tudo aquilo que foge ao seu objetivo imediato”.
A segunda metade do século XX foi um momento no qual muitos artistas se interessaram em extrapolar os limites espaciais impostos por museus e galerias, tomando a cidade como um grande suporte para sua arte. Como escreve Renata Marquez, o foco passa a ser na “arte para quem”, deixando de lado “as infinitas contradições da arte de quem”. Essa iniciativa se insere na preocupação, por parte de artistas, arquitetos e intelectuais, em inserir a arte no cotidiano, fosse através de sua dissolução na arquitetura, da arte pública ou do design.
Uma obra de arte disfarçada de arquitetura consegue quebrar, delicadamente, barreiras sutis de uso e acesso existentes em espaços institucionais de arte. Rompendo os limites da arte tradicional, a relação com o espectador se torna ainda mais espontânea. Assim também são os exemplos de trabalhos autorais, mostrados aos presentes: mobiliários interativos, espaços pensados de modo a dar autonomia a seus usuários.