Eu não percebo esse momento que estamos vivendo como uma situação-limite, acho que o que estamos passando é uma espécie de ajuste de foco no qual temos a oportunidade de decidir se queremos ou não apertar o botão da autoextinção, mas todo o resto da Terra vai continuar existindo. (KRENAK, 2020, p. 58).

Pandemia, crise ecológica, aquecimento global, desastres ambientais. Os alertas científicos e dos povos originários são antigos, diversos, e nos indicam “uma profunda mutação em nossa relação com o mundo”. Também é antiga a indiferença humana a tais alertas. Podemos permanecer na inércia, ou “descobrir um percurso de cuidados” (LATOUR, 2020, p. 24-31). 

Qual seria o papel da arte e do museu diante de inúmeros desafios e urgências em escala planetária? Consideramos que arte e museu podem pensar e atuar em diferentes aspectos da vida cotidiana e das relações sociais. Nesse sentido, como o trabalho de mediação cultural – que acontece no espaço das relações entre arte e públicos – pode ampliar o papel social e educativo da arte e do museu? Neste texto, reflito sobre alguns aprendizados com a experimentação da mediação como pesquisa e prática documentária, no trabalho com o projeto Educativa Museu Nacional (2021-2022), em Brasília. 

A Educativa é um projeto aprovado em edital do Fundo de Apoio à Cultura do Distrito Federal para desenvolver atividades públicas de formação e mediação cultural no Museu Nacional da República, buscando ampliar o uso social e o papel educativo do museu aos diversos públicos. Sua programação conta com diferentes ações de mediação cultural que resultam em encontros formativos, documentações em áudio e vídeo e materiais educativos. 

O Museu Nacional da República é um dos principais espaços públicos de exposição de artes visuais do Distrito Federal e, seguindo o Estatuto de Museus e a Lei Orgânica da Cultura, tem como um de seus princípios fundamentais o reconhecimento e a efetivação de seu papel social e educativo. 

Lembramos que o papel social dos museus é ressaltado por caminhos propostos pela museologia, desde pelo menos os anos 1960. Também é ressaltada a importância da função socioeducativa e do estímulo ao pensamento crítico, além da necessidade de integração do patrimônio ambiental ao cultural, tal como se aprende com a Nova Museologia, a Sociomuseologia, a Museologia Participativa, Cidadã, Comunitária e a ideia de Ecomuseus. Desse modo, busca-se um museu que nos permita estabelecer conexões com o mundo através da arte. 

Desafios da mediação cultural 

Diante das inúmeras restrições e transformações com a pandemia de Covid-19, os profissionais da mediação cultural enfrentam tanto antigos quanto novos desafios. A seguir, destaco alguns dos desafios com que temos nos ocupado no trabalho com a Educativa Museu Nacional. 

Um dos desafios antigos desse campo de pesquisa e atuação é questionar a ideia da mediação como serviço de difusão de conteúdos, para, em vez disso, fortalecê-la como um lugar de produção compartilhada de conhecimento. Para tanto, destacamos uma mudança na forma de se entender o “conhecimento” que interferiu no pensamento da educação em museus. Narrativas behavioristas, que reforçam a ideia de que o conhecimento é algo dado, que está fora do aprendiz, e que a aprendizagem é assimilação de informação, são problematizadas pela ideia de que o conhecimento é uma construção social. 

Eilean Hooper-Greenhill (1999), por exemplo, afirma que está no cerne da educação em museus de arte entender o processo de interpretação, que é parte da aprendizagem e da construção de significados. Para tanto, é essencial uma perspectiva construtivista de aprendizagem, em que os conhecimentos não são encontrados prontos ou simplesmente transmitidos, mas, sim, construídos de modo compartilhado com os públicos. Estes, por sua vez, são sujeitos ativos nesse processo dialógico. Certamente, assim como as “experiências”, as “interpretações” que podem surgir nos encontros entre arte e públicos acomodam uma multiplicidade de significados, narrativas e aprendizagens.

Outro desafio que está posto para a mediação hoje é questionar a unidirecionalidade da arte em relação aos públicos, pois essa prática pode redundar em uma atitude colonial, que sobrepõe um valor cultural sobre outros, entendendo os públicos apenas como destinatários da arte, como se não tivessem ou praticassem cultura. Diferentemente disso, se a mediação é pensada em um contexto no qual diferentes valores e práticas culturais coexistem, devendo, portanto, ser reconhecidos e respeitados, então pratica-se um entendimento dos públicos como também fazedores de cultura. Nessa perspectiva, os públicos constroem narrativas a respeito da arte e da vida, como agentes ativos no processo de construção de conhecimento. 

Esse desafio pode ser mais bem compreendido com a passagem do paradigma de “democratização” para o de “democracia” no campo cultural. Tais paradigmas influenciam o desenvolvimento de modelos e tipos específicos de ação e intervenção pública. O paradigma de democratização gira em torno da universalização da cultura (entendida no âmbito das artes consagradas e do processo civilizatório) e da ampliação do acesso (entendida na esfera do consumo). Nesse caso, os públicos geralmente são vistos como desprovidos de cultura, precisando ser “guiados” e “educados”, sendo potenciais consumidores do que é produzido por uma classe artística. Já o paradigma de democracia cultural parte do pressuposto de que a criação de significações e valores é comum a todos os indivíduos, considerando todos os cidadãos como potenciais criadores e produtores. Nessa perspectiva, a ação e a intervenção pública devem reconhecer e apoiar a produção, a difusão e a fruição simbólica da sociedade na sua diversidade.

Para enfrentar o desafio da unidirecionalidade da arte, propomos pensar e fazer a mediação a partir de uma abordagem que tem como ponto de partida, simultaneamente, a arte e os públicos, buscando encontros não hierárquicos entre essas instâncias. Nessa perspectiva, a mediação cultural implica a formação de uma sensibilidade para encontros inesperados e o que pode surgir daí. 

Pensando em como enfrentar esses desafios e ampliar o papel social e educativo da arte e do museu, temos experimentado na Educativa Museu Nacional a mediação como pesquisa e prática documentária. Para isso, assumimos as plantas como mediadoras, considerando sua qualidade agregadora em relação a várias questões e eixos do projeto, que vão além do universo da mediação cultural (arte, públicos, educação e patrimônio), abordando também a cultura digital, o meio ambiente e a saúde. 

Imagem 1 – Diagrama da mediação com ponto de partida duplo.

Fonte: Educativa

Mediação como pesquisa e prática documentária

A mediação como pesquisa e prática documentária corresponde a uma tentativa de diálogo mais horizontal com os públicos. Nessa perspectiva, o museu está em rede e interlocução com outros atores, atuando de forma interdependente, sendo mais um agente social, entre outros. 

No trabalho educativo em museus e exposições de arte é comum o uso de perguntas como uma estratégia para as conversas com os públicos. Geralmente, o trabalho de mediação vai até a disponibilização de certas perguntas, sem a preocupação de acompanhar as respostas, o que compromete a ideia da mediação como um lugar de produção compartilhada de conhecimento. Por isso, propomos que haja uma reflexão sobre as questões levantadas e algum acompanhamento das respostas, de modo que o diálogo pretendido seja efetivo. Nesse processo, entendemos que conhecimentos são construídos e partilhados de maneira colaborativa, participativa e multidisciplinar.

Com a Educativa, partimos de uma pesquisa sobre a ocorrência de “plantas no acervo” do Museu Nacional e do que chamamos de “pesquisa-brincadeira” em colaboração com a comunidade da Escola Parque da Natureza de Brazlândia (EPNBraz). Nesse processo, as mediadoras têm um papel decisivo como pesquisadoras e criadoras, enquanto os professores e as crianças da escola, por sua vez, participam como copesquisadores. 

Das relações entre as produções artísticas das crianças da EPNBraz e as obras do acervo do Museu Nacional que contêm plantas, produzimos o “Material Educativa”, que propõe brincadeiras e aprendizados com a arte e a natureza, a partir de relações horizontais ou micorrízicas entre aquelas diferentes produções, como se pode observar na Imagem 2. Além disso, dos registros em áudio de algumas conversas com os públicos nesse processo, como educadoras(es) e crianças estudantes com quem experimentamos o material, produzimos episódios de podcast da Rádio Educativa. 

Imagem 2: Proposição 1 do Material Educativa.

Fonte: Educativa

Um dos objetivos da mediação como pesquisa e prática documentária é registrar os encontros entre arte e públicos e seus efeitos de deslocamento ou transformação. O interesse está em fomentar a participação criativa dos públicos, mas também em refletir, por exemplo, sobre como participaram, que consciência e compreensões alcançaram, que ideias geraram, quem ou o que foi objeto de deslocamento ou transformação. 

Um desses encontros se deu com o retorno que tivemos da mãe de João Pedro (participante da pesquisa-brincadeira) sobre a experimentação do Material Educativa, ainda em contexto de pandemia e ensino totalmente remoto. Com seu relato, entendemos como o material lhe propiciou a lembrança de muitas brincadeiras que ela teve na infância, quando “tinham que inventar e criar suas brincadeiras e brinquedos na falta de recursos financeiros dos pais”. Também lhe possibilitou perceber que ela já tem os materiais da natureza em casa, que estes podem estimular a criação e a aprendizagem das crianças, mas que, na correria do dia a dia, nos esquecemos das brincadeiras da própria infância. Por isso, ela avaliou ser “muito bom trazer essas brincadeiras para as crianças de hoje em dia”, pois muitas vezes as pessoas não têm conhecimento dessa possibilidade, uma vez que “ficou automático comprar brinquedos de marca ou da moda”. Ela também manifestou seu entendimento de que “se o material for introduzido nas escolas, com as crianças que estão começando a aprender e criar suas brincadeiras e brinquedos”, haverá certamente “um resultado muito gratificante para os pais e professores”. 

Mediação como processo

No primeiro ano do trabalho da Educativa, entendemos que não é simples se livrar da unidirecionalidade da arte. Na prática, estamos quase sempre partindo da arte ou dos públicos, sem garantia de que esses caminhos vão se cruzar. Desse modo, estamos muitas vezes produzindo esses cruzamentos, tal como ocorre no “Material Educativa”, entre as produções artísticas das crianças da EPNBraz e as obras do acervo do Museu Nacional. Ainda assim, outros deslocamentos ou transformações podem surgir a partir de seu uso. De modo mais interessante, porém, os cruzamentos apareceram em um processo em que novas ações são concebidas a partir da conversa com os nossos interlocutores, tal como ocorre na experiência com a ação “Cartas para adiar o fim do mundo”. 

Tem como imaginar experiências dialógicas e inspiradoras para trabalhar em um campo como esse do Programa Educativa e dos museus. Porque cada vez mais os museus são chamados a assumir para além daquelas ideias demarcadas de um museu que tínhamos até o século XX. Hoje os museus são convocados a cumprir outras funções no campo da cultura, no campo da arte, no campo da produção de novos conhecimentos sobre a sociedade, sobre nós. Então, é muito interessante que, por exemplo, a gente imaginasse uma ação que convocasse esses corpos adultos, conscientemente, a gente quer convidar a ser adubo. (KRENAK, 2021).

Pensando o “humano como húmus”, como também sugerido por Donna Haraway (2016, p. 32), a ação das “Cartas…” surgiu a partir da conversa pública realizada pela Educativa com Ailton Krenak e se desdobrou em a. oficina de escrita, b. cartas para elementos da natureza, c. episódios de podcast da Rádio Educativa com educadoras que experimentaram a ação com seus estudantes e d. vídeos que relacionam trechos das cartas dos públicos com as obras do acervo do Museu Nacional. 

Com a Educativa, deslocamos a preocupação centrada no objeto de arte para o processo dos encontros entre arte e públicos, alimentando uma dimensão criadora e colaborativa na relação com os públicos. Também buscamos alimentar uma relação estreita entre a atuação e a pesquisa, procurando inscrever, na esfera pública, aquilo que foi produzido no trabalho de mediação. Nossa intenção com esse processo em desenvolvimento é que o trabalho de mediação cultural possa ampliar o papel social e educativo da arte e do museu. 

De uma perspectiva social e educativa, entendemos que a arte e o museu possuem um papel de provocar a reflexão com os públicos e fomentar a produção compartilhada de conhecimentos sobre o mundo, a vida e a nossa realidade social. Também podemos entender que a mediação cultural busca estimular o processo de conhecer, olhando o objeto de arte para fazer conexões com o que sabemos e sentimos, com a nossa realidade e com o contexto histórico, político, econômico, cultural, ambiental e social. Nesse processo, a mediação cultural pode ser uma ferramenta de descolonização do imaginário social e de desconstrução de preconceitos que são estruturais, com potência de produção de novos mundos e imaginários.

Referências bibliográficas

HARAWAY, Donna J. Staying with the Trouble: Making Kin in the Chthulucene. Durham / London: Duke University Press, 2016.

HONORATO, Cayo; PINTO, Viviane (Org.). Mediação como pesquisa e prática documentária: as plantas como mediadoras no Programa Educativa do Museu Nacional da República. Brasília: Tuia Arte e Produção, 2021. PDF. 

HOOPER_GREENHILL, Elean. Learning in art museums: strategies of interpretation. In: HOOPER_GREENHILL, E. 2.ed. The educational role of the museum. London and New Yourk: Routledge, 1999.

KRENAK, Ailton. A vida não é útil. São Paulo: Companhia das Letras, 2020. 

KRENAK, Ailton. O que podemos aprender com a natureza? Apresentação online. In: 1º Ciclo Formativa da Educativa Museu Nacional. 5 maio 2021. Disponível em: <http://www.educativamuseunacional.com/webinarios/> Acesso em: 2 maio 2022. 

LATOUR, Bruno. Diante de Gaia: oito conferências sobre a natureza no Antropoceno. São Paulo / Rio de Janeiro: Ubu Editora / Ateliê de Humanidades Editorial, 2020.