Qual é a tarefa da educação? Essa é a pergunta que tem me mobilizado há alguns anos no exercício da docência e da pesquisa com práticas educativas. Cato a educação em tudo, com ela me embolo, faço finta, graça, arrumo quizumba, sinto agonia, tenho espanto e, cotidianamente, sopro no vento palavras que se embrenhem no ritmo e ganhem corpo em algum canto desta terra.
No Brasil, firmo o ponto e dobro a aposta em que a principal tarefa da educação é a descolonização. Em outras palavras, é assumir sua força matricial de um radical vivo que vibra a diversidade e a liberdade dos modos de sentir, fazer e saber com os muitos mundos possíveis. Educação é um fundamento da vida. Entretanto, a colonização é uma empreitada contrária à vida, pois a nega como princípio ecológico que tem na diversidade uma de suas principais marcas. A colonização é também um projeto de dominação que tem a violência como sua lógica.
No Brasil de hoje, Estado-Nação assente e aquebrantado pelo contínuo colonial, a educação fiel à sua força matricial emerge como travessia de cura e batalha que confronta esse modo de dominação. Entretanto, o empreendimento aportado aqui há mais de cinco séculos investiu na captura do termo e no seu uso de maneira dissimulada para pregar uma promessa civilizatória que não atende à diversidade existente. Dessa maneira, a educação passa a ser uma palavra, montada por múltiplos sentidos, que disputa vários mundos possíveis. Nessa disputa de mundos há aqueles que percebem e apostam na coexistência de diferentes modos de ser, saber e aqueles que investem na produção de um único modelo que só é possível em detrimento da diversidade.
Quando partilho da cisma educadora que me move, não titubeio e salto no vazio para dar uma rasteira, cabeçada e até mesmo cuspir palavras de força contra o modelo utilitário, bancário, redentor e riscar no chão deste lugar que a educação é uma batalha por liberdade e semeadura de esperança por um mundo mais justo. Nesse tom, o que é vendido como educação, mas não comunga de respeito e responsabilidade com a vida, é somente um transgênico plantado na escassez da monocultura deste latifúndio.
Apontarei aqui algumas ideias que carrego em minha bolsa de esperanças, que alinhavadas ao debate sobre a educação no Brasil e fiadas nas muitas experiências de nossa gente podem trilhar caminhos mais responsáveis e implicados com a justiça social e cognitiva. Tendo como base uma filosofia da educação riscada em modos rueiros, brincantes, ecológicos e encantados por inúmeras sabedorias que cruzam o chão deste lugar, apostarei em uma educação firmada em seus quatro cantos. Cada canto, uma reivindicação/movimento para sentir, fazer e pensar as práticas educativas. Esses quatro cantos são a educação como fundamento corporal, fenômeno mais que humano, prática mandingueira e escrita telúrica.
Educação como fundamento corporal
Se a educação acontece na imbricação entre vida, arte e conhecimento, é no corpo que ela se aconchega, vibra, se expande como linguagem, diálogo, cisma, curiosidade, amorosidade e batalha. O corpo é o tempo/espaço primordial das existências, inscrever presença a partir do saber corporal ressalta a dimensão do ser sendo, ou seja, existir como contínuo movimento. A educação acontece quando há disponibilidade para o encontro, para ser afetado, alterado, confluir e compartilhar experiências. Os processos educativos como uma dinâmica inacabada de correr rio abaixo e desaguar no outro, que dá o tom do acabamento do que cada um de nós somos, têm no território corporal sua força. É no corpo que se expressa, sente e partilha a educação como ato de responsabilidade e prática de liberdade.
Mas qual é o lugar do corpo no mundo que desaba sobre tantos outros modos de existir? Tendo como métrica existencial um padrão de ser, saber e poder assente na lógica colonial, esse corpo é suprimido, desviado e decapitado pela matriz ocidentalizante que tem, na violência colonial, racialização, racionalidade moderna-ocidental e, nos pressupostos teológico-políticos, seus fundamentos. A princípio, a educação achatada por práticas escolarizantes que adotam a agenda curricular dominante não reconhece o corpo como núcleo, matriz e motricidade das experiências e dos conhecimentos. Reificam a lógica do conhecimento como um acontecimento restrito à atividade do pensamento, da abstração e de uma não integralidade do ser. Nesse sentido, dão contorno a um sentido de educação e processo educativo que é castrador, regulador, dogmático e não crítico.
Tenho acolhido o entendimento de que no contexto da dominação colonial o corpo é o primeiro lugar de ataque desse sistema. Sendo esse padrão de poder também adepto de um modo de escolarização, o corpo é anulado em suas potências quando submetido a ensino/apredizagem vigente adotado pela agenda curricular dominante. Entretanto, tenho dobrado a aposta e defendido que, se o corpo é o primeiro lugar de ataque da dominação colonial, ele também é o tempo/espaço dos contra-ataques. Nesse sentido, uma educação como prática de liberdade é aqui entendida como uma prática comprometida com a descolonização, que perpassa pelo reconhecimento dela como um fenômeno corporal.
Assumir o corpo, a corporeidade como núcleo, chão comum e deságue dos processos educativos nos leva a reposicionar a educação diante dos pressupostos da dominação colonial/moderna-ocidental. Tendo o corpo como matriz e motricidade dos processos educativos, confrontamos não somente o paradigma político e epistemológico que subordina o corpo em detrimento do pensamento, mas assumimos o corpo como núcleo das experiências, memórias, comunidade e aprendizagens que, em sua diversidade, seu movimento e sua relação com o mundo, compartilha, semeia e assenta conhecimentos. O corpo como chave conceitual e disponibilidade filosófica para pensar a educaçao contribui de maneira afirmativa para o debate sobre a violência como elemento estrutural e estruturante desse mundo, principalmente como semântica que rege os contratos de dominação racial, gênero e antropocêntrico.
Educação mais que humana, prática mandingueira e escrita telúrica
Se a educação é um fundamento da vida, é no corpo e em tudo que ele pode dar, principalmente como brincadeira, cisma, alegria, amor, fúria e caoticidade, que ela acontece de maneira livre, dialógica e ecológica. Perseguindo horizontes educativos que tenham liberdade, esperança, amorosidade, respeito e responsabilidade com as diferenças, é que avanço nas apostas de disputá-la como radical vivo que vadia, guerreia, cura e enfeitiça as demandas de sua gente. Considerando que a vida implica experiências comunitárias de ritualização dela e que esses modos de ritualizar fazem uso de gramáticas mais amplas do que aquilo que vem sendo apresentado nos últimos cinco séculos, avanço na proposição de tratar a educação como fenômeno mais que humano, prática mandingueira e escrita telúrica.
Certa vez, em conversa com uma criança, comentei que precisávamos de professoras e professores que fossem mais que humanos; a criança, atenta e perspicaz, me questionou: não vai dizer que você quer que tenhamos aulas com alienígenas? A criança, ao responder dessa maneira, me fez mergulhar ainda mais naquilo que me incomodava e me convocava a uma reflexão no campo da Educação e das Ciências Humanas.
Não é de hoje que há um amplo debate sobre os impactos de como o humano, elevado à condição de distinção e poder em relação aos outros seres, tem contribuído de forma acelerada para um desequilíbrio da vida no planeta. Esse desequilíbrio não deve ser medido somente pela ação dos ditos humanos no chamado meio ambiente e entre si, mas deve ser considerado também pelo impacto na desertificação dos conhecimentos e das possíveis aprendizagens em relação com a diversidade de saberes e diálogo com mais que humanos.
Sendo pedagogo, atuando na pesquisa em Educação e na formação de outros professores e professoras tendo a admitir que é majoritário nessa área de conhecimento a defesa da educação como fenômeno humano. Entretanto, sou munido da cisma curtida em outros contextos educativos como ruas, esquinas, quintais, terreiros, rodas, folias, roças e florestas que compartilham de processos de aprendizagem com os mais diferentes seres. Há uma máxima filosófica circulada em alguns terreiros do Brasil que diz: aqui nada se ensina, mas tudo se aprende.
Os povos que aqui estavam antes da instalação da empresa colonial, os povos que por aqui chegaram via diásporas produzidas pelas mais diversas formas de violência – esse mundo que uns insistem em plasmar como uma única coisa é, para a maioria dos viventes, uma confluência de muitos mundos que interagem e aprendem das mais diferentes formas. Dessa maneira, não é anormal a defesa de que por aqui se aprende com as florestas, os rios, animais, tempos, mortos e com as mais diferentes maneiras de ritualizar a vida em comunidade, não somente a humana, mas comunidade de viventes. Das aprendizagens das poesias de quintal, das memórias imantadas nos rios e montanhas das aldeias daqui, das narrativas contadas pelas bocas de búzios e sementes, quais são as possibilidades de compartilharmos experiências educativas que transbordam uma métrica antropocêntrica e um modelo de escolarização contrário à diversidade? Essa é a pergunta que me mobiliza a instigá-los para uma educação mais que humana.
Instigar, caçar os vazios, drible, esquiva, pulo e deslocamento, negaça, ginga e palavra de força cantada para fechar o corpo contra qualquer olho grande e regime totalitário que queira nos capturar. Essas são as façanhas de um modo de educação que tem no corpo e na biointeração suas frentes de batalha e, por isso, joga esse suporte em atitude mandingueira. O que seria, então, uma prática mandingueira na educação? Como em um jogo de capoeira que se inicia, mas nunca tem fim diante da circularidade da roda, uma prática mandingueira se faz na capacidade de inscrever com a presença e a itinerância no mundo mais perguntas do que respostas. Sendo um jogo inacabado, responder de maneira conclusiva não comunga do espírito da roda, por isso se reconhece o chão pisando devagar, virando ponta-cabeça, vislumbrando vários caminhos para, na relação, brincar de fazer perguntas.
Tenho cismado que a força transformadora da educação como prática de liberdade é aquilo que mais se aproxima da linguagem/comunicação com as crianças, os quintais, matas, marés, brincadeiras e demais formas da ritualização da vida e do cotidiano em comunidade. Dessa forma, a mandinga como categoria conceitual está implicada na expansão dos saberes corporais como tática de não apreensão do ser por um regime totalitário. O que tenho dito e defendido é a emergência de um modo de educação que nos deseduque do cânone e em seus giros, saltos e ginga reposicione o corpo para outras aprendizagens. Nesse sentido, essa prática mandingueira consiste em, nos cotidianos, caçar os vazios deixados pelo regime que se quer único e, ali, roçar esperanças com outras inscrições do ser e saber.
Por fim, firmo que a educação que batalhe pela descolonização cruza corpo, biointeração, mandinga e escritas telúricas, tendo esse último ponto como a emergência da escavação e reivindicação de memórias, narrativas e políticas plantadas nas margens daqui que, historicamente, foram e continuam a ser subordinadas por um padrão discursivo dominante. Nesse ponto me mobiliza escavar, estranhar e pluralizar a expressão “chão da escola”, que é comumente reivindicada por educadoras e educadores para se referir às práticas cotidianas e experiências vividas no contexto escolar. Minha implicação vai além do ambiente escolar em si e adentra no interesse em questionar e conhecer quais memórias os chãos que sustentam as escolas do Brasil abrigam.
Se a leitura de mundo precede a da palavra, quais leituras são possíveis à medida que acessamos as escritas de chão, inscrições imantadas por inúmeros corpos/presenças que fazem morada na Terra? Matas, florestas, sertão, beira de rio, beira do mar, lajedos, montanhas, sambaquis, aldeias, quilombos, roças, terreiros, esquinas, cemitérios… outros mundos. O quanto de Brasil conhecemos para nutrir uma disputa por uma educação que faça do chão da escola um tempo/espaço encarnado por outras memórias e por outras possibilidades de escrever histórias mais justas?
Nessa tarefa é necessária a curiosidade de uma criança que brinca com a terra, a atenção e o respeito de um mateiro e a sabedoria de um vaqueiro que conversa com os bichos via a língua do chão para enveredarmos por aprendizagens que alarguem nossas subjetividades, recuperem sonhos e revigorem nossas existências. Essa mirada nos dará fôlego e força para sair em defesa da aldeia.