A visita “Modos de Ver” é uma iniciativa que integra uma série de ações relacionadas ao patrimônio dentro do Programa CCBB Educativo – Arte & Educação. Tema que permanentemente atravessa a programação, o patrimônio e seus múltiplos desdobramentos, sejam históricos, arquitetônicos, antropológicos ou estéticos, convocam a equipe de educadores a elaborar estratégias que estimulem experiências urbanas mais complexas e multifacetadas. É sobre pensar de modos de olhar a cidade considerando algo específico do agora sem ignorar os atravessamentos das camadas do passado que sobrevivem e reverberam nos usos e significados que atribuímos a cada espaço.
Apesar de laboriosa, essa tarefa já se apresenta recortada pelo prédio que diariamente ocupamos: o CCBB BH, situado na Praça da Liberdade, em Belo Horizonte. Tal localização, por si só, já implica uma série de problematizações relacionadas às narrativas que descrevem o “nascimento da capital mineira”. Em nossas ações patrimoniais, portanto, buscamos sobretudo tensionar tais narrativas. Investigamos junto com o público, por exemplo, em que medidas se atualizam os ideais modernos sobre os quais foi erigida a nova capital mineira, assim como em que medidas os mesmos ideais são contraditos pelas instâncias do presente.
Ver a cidade sob a ótica da gastronomia
No contexto do Dia do Patrimônio, que em sua mais recente edição destacou as relações entre patrimônio e gastronomia, fomos provocados a pensar em uma programação voltada para essa temática. Essa seria a oportunidade para colocarmos na rua a visita “Modos de Ver”, desejo que há algum tempo esperava pelo momento certo de ser concretizado.
Apesar de sua fundação relativamente recente, a população da cidade de Belo Horizonte tem uma relação íntima e significativa com a alimentação e a gastronomia. Trata-se, em certo sentido, de uma esfera bastante democrática, capaz de acolher uma pluralidade de públicos e ofertas que vão desde o recém celebrado universo gourmet até os petiscos oferecidos nos “botecos copo-sujo” que ocupam muitas paisagens e calçadas belorizontinas. Essas paisagens nos interessavam, pois poderiam oferecer não apenas um recorte, mas um olhar transversal para a história da cidade. Buscávamos uma costura entre tempos e espaços que não necessariamente estão presentes na pomposa Praça da Liberdade. Ampliar o alcance das nossas conversas: mediar a cidade deslocando-se por ela.
Só a possibilidade de inaugurar um ciclo de visitas pela cidade já era suficientemente interessante. Convocar a gastronomia como um fio condutor desse trajeto se mostrou um desafio, mas também uma abertura à possibilidades de interação com público que ainda não havíamos explorado.
Conversas sobre a praça fora da praça
A oferta da visita convidou o público para uma trajeto iniciado na Praça da Liberdade, com uma breve parada no Café Nice, situado na hipercentral Praça Sete, se encerrando um pouco mais adiante, no Café Palhares. O trecho que interligaria a Praça da Liberdade aos dois tradicionais cafés seria a rua da Bahia, conhecido corredor cultural de Belo Horizonte, “síntese do espírito de uma BH atual, plural, pulsante, viva, e não menos contraditória”. O que tínhamos em mente era uma narrativa que colocasse em paralelo a inauguração do prédio que hoje abriga o CCBB BH – antes Secretaria da Segurança Pública – e o surgimento dos dois cafés escolhidos como pontos de parada da visita. Os anos 1930 são abordados como uma época que catalisa as transformações da paisagem da cidade – o fim da “era do tijolo” e o início da “era do concreto armado”.
Outra estratégia que determinou nosso trajeto foi o desejo de deslocar as discussões geralmente ancoradas pela arquitetura e a paisagem da praça para outras edificações da cidade. Mais do que apontar para características arquitetônicas, a intenção era evidenciar como tais peculiaridades se repetem e comunicam uma intenção niveladora do projeto que concebe a capital. Por exemplo: a conversa sobre os ideais positivistas que motivaram tal projeto aconteceu diante da casa que um dia pertenceu ao engenheiro responsável pela terraplanagem do terreno onde hoje se localiza a Praça da Liberdade. Toda a iconografia positivista está ali naquela casa-tipo, em escala menor.
Na Rua da Bahia o público compõe o protagonismo da visita
O projeto de Belo Horizonte foi imaginado no sentido de prever um fluxo controlável de pessoas pelas ruas da cidade. Gosto de pensar em nossa visita como um contraponto sensível a essa característica. Na medida em que descíamos a Bahia, o público ia ficando mais à vontade para participar, não apenas expondo dúvidas sobre o que trazíamos, mas também partilhando suas experiências sobre a cidade, de modo que memórias e narrativas não oficiais iam costurando a conversa. Com a passagem do tempo, o ambiente criado pelo coletivo, inicialmente formado por grupos de desconhecidos, se tornava mais íntimo e acolhedor.
Além disso, surgiam a todo tempo pequenas interações paralelas àquelas previstas no começo da visita. Percebo que esse “estar na rua” impõe à visita um outro tempo, que não é o da visita mediada dentro do espaço expositivo. Embora o trajeto seja mais ou menos planejado, com paradas estabelecidas e seus temas correspondentes, a rua tem suas surpresas.
A forma como esses acontecimentos imprevistos passam a fazer parte da visita é fascinante. Estar na rua com o público demanda essa abertura – mais do que isso: exige que ela seja o condutor central da visita. A esse respeito, percebemos, por exemplo, que os modos de uso da cidade previstos em sua geométrica constituição inicial são visivelmente insuficientes para dar conta da vida pulsante de um centro urbano, ao meio dia, com um grupo de cerca de 15 pessoas.
Pausa para um café: Café Nice e Café Palhares
Voltemos ao tema principal. A parada no Café Nice é o momento em que os educadores, definitivamente, se liberam da obrigação de seguir qualquer roteiro. À beira do balcão, as interações entre os participantes dão o tom da conversa. Interessante perceber como uma das pautas da visita se manifesta naturalmente ali, à medida em que o comensalismo, essa característica humana que faz da refeição um ato de produção de laços com o outro, toma conta da visita.
Lembramos, então, que a transformação da cidade nos anos 1930 traz como uma de suas marcas a demanda por novos lugares de consumo e socialização. No movimentado hipercentro da capital, esse “tomar um cafezin” é também um convite à pausa e à conversa descompromissada. Naturalmente, essa ambiência toma conta do grupo, e a visita se torna um encontro. Confraternizar, se apresentar para o outro, perceber que talvez esse estar junto seja a vocação primordial do espaço público.
Estamos falando de uma visita que vai tomando forma a partir das margens, dos acasos, dos imprevistos e do espontâneo. De forma subliminar, o objetivo inicial se cumpre: as relações entre patrimônio e gastronomia se mostram fundamentais para uma experiência de cidade, pois nesse cruzamento a pólis é ocupada a partir dos encontros fortuitos, do tira-gosto regado à cerveja gelada, das conversas filosóficas que duram o instante de uma mesa de bar. Do sabor de um prato típico que remonta e ativa memórias.
Na primeira vez em que fui ao Café Palhares comer Kaol (abreviação para cachaça, arroz, ovo e linguiça) eu estava com meu pai. Eu devia ter uns oito anos, acho, e ele trabalhava na loja de calçados do outro lado da rua. Era fascinante, àquela altura, o afeto e o calor com que ele era recebido pelos garçons e os demais clientes, geralmente debruçados no balcão infinito refletido no espelho. Há algo daquele momento gastronômico-boêmio que ainda permanece em mim. Algo dessa memória foi a faísca que deu origem à essa edição de Modos de Ver. Como educador e como belorizontino, foi uma satisfação enorme perceber que essas sensações se renovam com os novos encontros. Eu que venham os próximos.