In libris gaudium é uma expressão latina que significa “alegria nos livros”. A sentença batiza uma pequena coletânea de livros que trata da bibliofilia, do amor aos livros. Aliás, Bibliofilia, do escritor francês Anatole France (1844-1924), é o título do primeiro volume da coleção. O autor, já na primeira página dessa pequena obra, adverte que “Não existe verdadeiro amor sem um quê de sensualidade. Não se obtém felicidade dos livros se não se gosta de acariciá-los”. Fica entendido que a afeição aos livros que, porventura, logramos alcançar, não dispensa o contato e o manuseio deles. Isso não implica a exigência de possuí-los, mas existem pessoas que, por vários motivos, não podem prescindir da presença. Fica entendido também que o texto e o livro estão, é claro, relacionados, mas são distintos. O livro é um dos veículos do texto. Pode-se ter acesso ao texto sem, necessariamente, acessá-lo a partir de um livro ou outro veículo impresso, como um jornal. Aliás, mais de uma vez foi decretada a obsolescência dos meios que promovem os modos tradicionais de leitura. O computador em que trabalho torna acessíveis bibliotecas inteiras e, no entanto, os livros continuam sendo escritos, impressos e consumidos. Há nesse interesse persistente pelo livro certa dose de fetiche: é que o livro continua portador e símbolo de conhecimento e o conhecimento é sinônimo de poder.
No percurso da minha formação, a arte e a educação tornaram-se fenômenos quase siameses. As exigências de uma existência proletária, amalgamadas às experiências vivenciadas em museus e congêneres confirmaram que esses fenômenos, arte e educação, são faces distintas de uma mesma lua. Nessa trajetória, o acesso ao livro foi indispensável, em não poucos desses livros, a arte é pretexto para o roteiro pedagógico, sendo ela própria vetor de educação.
A propósito, é interessante como na história pretérita e contemporânea da arte brasileira essa importância atribuída ao livro é trabalhada pelos mais diversos tipos de artistas, sendo que, em alguns casos, o livro – e a leitura dele – é o pretexto para a realização da obra e, em outros, o próprio objeto, livro, é convertido em obra.
José Ferraz de Almeida Junior (1850-1899) é um notável pintor paulista do século XIX. Sua obra é imprescindível a certos itinerários da história da arte no Brasil. Em algumas de suas pinturas, as narrativas urdidas pelo artista sugerem que, de fato, a relação das suas personagens com o livro ou a leitura é fundamental nas tramas que ele apresenta. Será importante, porém, considerar o lugar de onde o discurso é emitido, já que a condição de gênero e classe organiza narrativas e sugere, a partir delas, os roteiros que serão percorridos pelos olhos de quem tem acesso a elas. Por exemplo, na pintura Cena de família de Adolfo Augusto Pinto, de 1891, obra que pertence ao acervo da Pinacoteca do Estado de São Paulo, o artista nos apresenta, já a partir do título da obra, a rígida hierarquia patriarcal estabelecida naquele período da história. No retrato da intimidade de uma família burguesa do fim do século XIX, essa hierarquia fica patente, pois, no primeiro plano da obra, o “chefe” da família, o engenheiro, Adolfo Augusto Pinto, representado comodamente sentado e formalmente vestido, ocupa-se em ler. Os demais membros da família, mulher, filhos e filhas, são representados nos planos secundários da pintura e desempenham os papéis subalternos a eles socialmente destinados. A atividade valorizada da leitura é exercida pelo homem, pelo engenheiro Adolfo Augusto, e essa operação atrai também outro personagem masculino, um menino que, de pé, contempla um livro, ou álbum. Se, nessa hierarquia, o exercício da leitura enobrece quem o realiza, temos que considerar também o que é lido. O engenheiro lê um sisudo e insuspeito boletim sobre engenharia.
Na produção de Almeida Junior há várias mulheres que mantêm com o livro e a leitura algum tipo de relação. Há algo de sutilmente subversivo na pintura, sem data conhecida, Moça com Livro, que pertence ao acervo do Museu de Arte de São Paulo Assis Chateaubriand, o MASP. Nesse delicado e sensual retrato, Almeida Júnior nos apresenta uma jovem que, ruborizada e deitada sobre a relva, ergue os olhos, do livro que lê, numa atitude reflexiva. Ora, de fato, existia naquele período um comércio de livros especialmente recomendados a senhoras e senhoritas. É possível que a jovem retratada se ocupasse de um deles. Uma de suas mãos apoia sua cabeça enquanto a outra marca, com delicadeza, a página presumidamente lida. Um dos seus ombros está exposto, assim como seu colo branco. Se a maneira como o artista executa a pintura denota sua sensibilidade moderna, ou, vá lá, modernizante, essa sensibilidade também se apresenta na modelo que lê, já que esse hábito não seria exatamente rotineiro num país em que a população era grandemente uma presa do analfabetismo. Para além disso, e isso é importante, Almeida Junior nos incita ao voyeurismo: já que a personagem não nos olha, ou está alheia à nossa presença, ficamos liberados para percorrer com os olhos a imagem que inspira nossos devaneios lúbricos.
Quem tem o olhar desobstruído, liberado? Homens ou mulheres? A quem, afinal, esse corpo se dá? Se existe sinceridade na representação da hierarquia da sociedade burguesa e machista presente na obra Cena de família de Adolfo Augusto Pinto, que anteriormente consideramos, é razoável supor que a representação da leitura, no caso da moça, é pretexto para o desfrute sensual masculino consumado pela apreciação dessa imagem.
Esse não é único exemplo da manobra empregada pelo artista, estratégia que, a propósito, não é inédita, já que, no ocidente, para o deleite dos homens, mulheres vêm sendo retratadas nas mais variadas situações.
Ainda a propósito de Almeida Junior, da leitura, do livro e da nossa relação com eles, a Pinacoteca do Estado de São Paulo conta com algumas das mais célebres criações do pintor de Itu e, entre elas, está justamente Leitura, de 1892.
A interpretação, ou leitura, que temos de uma obra de arte é resultante das nossas experiências e vivências. Um arquiteto ou geólogo terá da pintura Leitura, de Almeida Junior uma opinião que será, em parte, influenciada por essa formação específica. A multidisciplinaridade é, portanto, bem-vinda à análise de obras com a densidade formal e conceitual similar a essa Leitura.
Nessa obra, o artista apresenta uma composição que, academicamente falando, é pouco ortodoxa: há uma única personagem presente à cena. Em uma varanda, confortavelmente acomodada numa cadeira, uma jovem burguesa de cabelos longuíssimos está absorta na leitura de um livro. À sua direita, há uma cadeira vazia e, nela, estão dispostos alguns objetos que sugerem uma ausência que é apenas temporária. Novamente, a personagem, concentrada na leitura, fica à mercê da nossa curiosidade, nossos olhos não são interditados por outros que poderiam censurá-los.
José Ferraz de Almeida Junior é, como foi dito, um artista incontornável na história da arte do país. Apesar da morte precoce e violenta, ele legou à posteridade uma obra que ilumina o período em que foi realizada, as contradições e mazelas do período em que viveu são apresentadas de maneira sútil e, entre suas virtudes, está a introdução de personagens antes subalternizados, ou mesmo preteridos, pela arte acadêmica. Nos retratos que realiza desses personagens, ele confere grande dignidade a essas mulheres e esses homens de grupos sociais desprezados por outros artistas do período. O “caipira”, o mestiço, a jovem pobre e viúva, as casas de pau a pique, de taipa de pilão, a arquitetura popular, tudo isso recebeu, de maneira inédita, o interesse do artista. Sobre o que será que meditam esses personagens que, evitando nosso olhar, entregam-se à silenciosa meditação enquanto picam o fumo e fumam seus cachimbos?
Esses personagens não leem, mas exprimem sua funda sensibilidade em olhares e gestos simples, plenos de humanidade e grandeza.
Uma das últimas obras do artista é a pintura Saudade, de 1899. Nela, a viúva jovem que mencionamos está representada de pé, num ambiente rústico que denota certa carência. Toda de preto, com o cenho franzido pela dor, que deveras sente, ela contempla, chorando, uma fotografia. No seu rosto corre uma lágrima espessa. A obra, exímia na sua execução, permanece sendo de uma pungência extraordinária e há um detalhe na cena, ao lado da viúva que chora o morto querido. Há, num plano inferior do espaço que ela ocupa, um livro de capa vermelha, coberto por um xale branco. Único detalhe de cor mais vibrante na pintura realizada com palheta muito sóbria. A esplêndida pintura pode ser apreciada na Pinacoteca do Estado de São Paulo.
Da importância política do ato de ler, de ler os livros, de ler as obras, de ler o mundo filtrado pelo conhecimento construído a partir das múltiplas experiências que a educação e a arte nos proporcionam no campo expandido da cultura.
O escritor cearense Adolfo Caminha (1867-1897) foi contemporâneo de Almeida Junior e, como ele, foi um pioneiro. Caminha foi autor de uma obra abreviada por sua morte prematura e nela pontuam os romances A Normalista, de 1893, e o surpreendente Bom-Crioulo, publicado pela primeira vez em 1895. Esse último é considerado por muitos como um dos primeiros romances, em toda a literatura ocidental, a abordar no seu enredo a homossexualidade dos protagonistas. De fato, a temática homoerótica é central no desenvolvimento da trama que descreve a turbulenta relação entre dois marinheiros. O romance foi tanto mais polêmico quando trouxe à tona, como protagonista, um personagem negro, Amaro, o tal Bom-Crioulo. Junte-se a isso o fato de o objeto do seu interesse amoroso ser adolescente e branco. No Brasil recém-saído do período escravagista, essa mistura provou-se explosiva e, ainda hoje, por outros motivos, o romance suscita polêmicas. Entre os vários elementos de interesse que o autor nos apresenta, está a violenta realidade, que o autor de fato conheceu, vivenciada nos navios da Marinha brasileira naquele quadrante da história.
Aos menos favorecidos e aos negros recém-libertos, em particular, não eram muitas as oportunidades de trabalho, e o serviço militar apresentava-se como alternativa àqueles que não tinham melhores opções. Na composição de seus quadros e no trato que dispensava aos marujos subalternos, a Marinha expressava aquela hierarquia rígida, machista, misógina e racista que estava presente na própria sociedade de então. Ora, as descrições dos castigos físicos a que eram submetidos os marinheiros parecem não ter causado tanto escândalo quanto um caso de amor inter-racial por eles protagonizado, mas foram esses castigos que justamente detonaram um dos capítulos mais heroicos e trágicos da nossa história.
A vivacidade com que Adolfo Caminha descreve essas cenas garante o nosso interesse, senão vejamos:
Metido em ferros no porão, Bom-Crioulo não deu palavra. Admiravelmente mando, quando se achava em seu estado normal, longe de qualquer influência alcoólica, submeteu-se à vontade superior, esperando resignado o castigo. Reconhecia que fizera mal, que devia ser punido, que era tão bom quanto os outros, mas, que diabo! Estava satisfeito: mostrara ainda uma vez que era homem…Depois estimava o grumete e tinha certeza de o conquistar inteiramente, como se conquista uma mulher formosa, uma terra virgem, um país de ouro…Estava satisfeitíssimo. A chibata não lhe fazia mossa; tinha costas de ferro para resistir como um Hércules ao pulso do guardião Agostinho. Já nem se lembrava do número das que apanhara de chibata.
E um pouco mais além, o autor prossegue na descrição do castigo:
De repente, porém, Bom-Crioulo teve um estremecimento e soergueu um braço: a chibata vibrara em cheio sobre seus rins, empolgando o baixo ventre. Fora um golpe medonho, arremessado com força extraordinária. Por sua vez, Agostinho estremeceu, mas estremeceu de gozo ao ver, afinal, triunfar a rijeza de seu pulso. Marinheiros e oficiais, num silêncio concentrado, alongavam o olhar, cheios de interesse a cada golpe. – Cento e cinquenta!
Nesse trecho do romance ficam explícitas as características que fazem o interesse desse texto. É interessante como a experiência mutante do público renova ou torna obsoleto dado conteúdo, um tema específico. Quinze anos após a publicação desse livro, no mesmo Rio de Janeiro que lhe serve de paisagem, estoura, em 1910, a “Revolta da Chibata”, a rebelião liderada pelo marinheiro João Candido (1880-1969) contra os castigos físicos na Marinha do Brasil. A rebelião ocorre durante o governo de Hermes da Fonseca, que traiu e reprimiu com inaudita violência os revoltosos, prendendo a maioria deles e expulsando o líder, João Cândido, da Marinha.
A rebelião da marujada negra e pauperizada confirma a tradição irredentista de certa parcela oprimida da população do país, história, aliás, bem contada pelo jornalista, sociólogo e historiador Clóvis Moura (1925-203) no seu já clássico Rebeliões da Senzala – Quilombos. Insurreições. Guerrilhas, de 1953.
O também jornalista cearense Edmar Morel (1912-1989) publicará, em 1959, A Revolta da Chibata, obra de referência sobre o assunto. Nesse texto ficam patentes o racismo, a violência dos castigos físicos e das péssimas condições de trabalho que vigoravam na Marinha do Brasil. Se a revolta logrou pôr fim aos castigos desumanos, ela também levou à morte, como foi dito, a quase totalidade dos marinheiros que dela participaram, pois a maioria deles morreria em função, justamente, dos maus tratos enquanto eram mantidos encarcerados pelo Estado no momento posterior à rebelião.
A obra de Morel não foi a única que mereceu a atenção de um intelectual ou artista,
Aldir Blanc (1946-2020), jornalista, cronista, poeta e letrista, com o seu parceiro, músico e também poeta e letrista João Bosco, compôs, em 1974, o antológico samba Mestre salas dos mares, que procurou manter viva na memória dos excluídos a ação da marujada insurreta contra os desmandos do oficialato. Tornada célebre na voz da magistral cantora Elis Regina, o samba desagradou setores do governo autoritário do momento e teve, por isso, trechos censurados.
No momento em que aconteceu, a Revolta da Chibata recebeu grande atenção da imprensa, posto que os revoltosos ameaçassem, caso suas reivindicações não fossem atendidas, bombardear a então capital federal com os canhões de grosso calibre das belonaves que passaram a controlar. Foi enorme a comoção no país e grande a mobilização da imprensa que, em geral, demonizava os marinheiros revoltados. Da profusão de imagens e caricaturas que resultaram dessa cobertura, uma fotografia chama a atenção. É aquela em que o marinheiro João Candido se faz fotografar, justamente, lendo o manifesto dos marinheiros rebelados. Num país que, como dissemos, era presa do analfabetismo crônico, e onde a eugenia, a pseudociência que pretendia provar a superioridade dos brancos sobre todos os demais grupos sociais, era adotada como política de Estado, essa cena do rebelde negro que lê está revestida de um significado duradouro.
O rebelde, na intenção de repelir a ideia que fazia dele parte da sociedade racista, se apresenta a esta mesma sociedade como alguém que quer participar dela com plenos direitos através do ato transgressivo e fecundante instaurado por quem lê. Lê o texto, a imagem e, partindo deles, o mundo.