Segundo o Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (IPHAN), o patrimônio cultural de um país é formado pelo conjunto dos saberes, fazeres, expressões, práticas e seus produtos, que remetem à história, à memória e à identidade de seu povo. Ainda assim, há de reconhecer-se o que efetivamente constitui esse patrimônio é fruto de uma escolha feita a partir daquilo que as pessoas – e as instituições, como o Estado – consideram mais importantes e mais representativas.
Não é de se espantar, portanto, que uma obra como “Deixando Cair Uma Urna da Dinastia Han” (“Dropping a Han Dynasty Urn”), realizada por Ai Weiwei em 1995, tenha causado tanto furor entre os colecionadores de antiguidades. Convertida em um dos mais conhecidos trabalhos do artista chinês, a obra consiste em uma série de três fotografias em preto e branco. Na primeira, Weiwei segura um vaso de 2000 anos, orçado em cerca de US$ 1 milhão; nas duas seguintes, ele aparece soltando o artefato que, ao final, se estilhaça no chão.
“Quando entramos em contato com esse trabalho, nosso pensamento ocidental logo o associa à ideia de vandalismo”, analisa a historiadora Carolina Ruoso, convidada a conduzir a edição de fevereiro de 2019 do curso Transversalidades, realizado como parte do Programa CCBB Educativo – Arte & Educação. “O que vemos nessas três imagens nos leva a questionar os limites da arte diante da história e de uma certa monumentalização instrumentalizada do passado. Entretanto, esse não é o contexto a partir do qual ela foi criada, então é preciso realinhar nosso pensamento para pensar o que ela, de fato, nos apresenta.”
“A noção ocidental à qual submetemos a ideia de patrimônio e patrimonialização nos leva a não quebrar, a manter a existência dos objetos”, comenta ela. “No Oriente, esse tipo de pensamento não prevalece, e o patrimônio imaterial, ou seja, o saber fazer, é em geral levado em maior conta do que o objeto ou o produto em si”. Não é à toa, desse modo, que o artista recria a obra 21 anos depois, em 2016, atribuindo-lhe uma nova abordagem ao utilizar pequenas peças de Lego para reconstitui-la.
Carolina Ruoso também explica que “Deixando Cair Uma Urna da Dinastia Han” pode nos ajudar a compreender o processo de patrimonialização, na medida em que propõe uma “negociação entre preservar e destruir”.
“A preservação só existe na relação mútua com a destruição. Então, a partir do momento em que entendemos o patrimônio como o resultado dos processos de destruição, passamos a observá-lo de forma mais crítica. Vamos entender que, nesse processo de escolha, uma série de outras coisas são deixadas de lado e produzem esquecimento. Memória não é só lembrança. Memória também é esquecimento. E Ai Weiwei está nos convocando a pensar, sobretudo, no esquecimento”.
Ai Weiwei Raiz
Entre 2018 e 2019, a exposição “Ai Weiwei Raiz” circulou pelas quatro sedes do CCBB, trazendo pela primeira vez ao Brasil uma série de obras icônicas da carreira do artista, assim como trabalhos inéditos cuja proposta era desvendar a cultura brasileira e representar objetos relativos à biodiversidade do país. Em “Sete Raízes” (“Seven Roots”), por exemplo, Weiwei cria uma obra que trata da união entre os contextos culturais chinês e brasileiro, e a maneira como o artista conduz sua própria cultura como forma de olhar para o mundo, apreendê-lo e transformá-lo em obras artísticas surge como um aspecto que chama a atenção da historiadora.
“O que nome dessa exposição nos ajuda a pensar? Quando a gente olha e pensa na palavra, o que ela significa para a gente?”, questiona. “Partindo de um ponto de vista não ocidental, as árvores ganham um significado fortemente atrelado à religião, ao sagrado e ao ancestral. Elas nos proporcionam uma forte relação com a ancestralidade. As árvores que estão expostas foram descobertas em Trancoso, na Bahia. Elas são nativas brasileiras e muito provavelmente estavam aqui bem antes da colonização.”
Segundo Carolina, o fato de a própria exposição ter um nome atrelado à ideia de gênese, seja cultural ou artística, a aproxima das comunidades tradicionais brasileiras de diversas maneiras e, portanto, de um patrimônio que durante muito tempo foi negado pelas instituições do país. Na visão da historiadora, Ai Weiwei traz essa cultura para dentro de uma grande exposição como forma de combater o esquecimento e mostrar que essas comunidades estão, na verdade, muito mais próximas do que imaginamos os que vivemos nas grandes cidades.
“Quando o Ai Weiwei diz que arte, para ele, é agir – e que ela não existe sem esse verbo –, essa atuação tem um papel muito importante que está fortemente atrelada à liberdade. O artista, portanto, se torna a autoridade da liberdade, por meio de um espaço conquistado. A sua liberdade, desse modo, precisa ser pensada como uma maneira de garantir a dignidade humana”.