A edição de março de 2021 do curso Processos Compartilhados convidou a audiodescritora, professora e filósofa Bell Machado para dialogar sobre o acesso às artes por pessoas com ou sem deficiência visual, tomando como perspectiva a audiodescrição.
Bell Machado iniciou o encontro compartilhando brevemente alguns aspectos de sua jornada. Movida pelo interesse por Cinema, ingressou no curso de Filosofia em 1999. No mesmo ano, quando já atuava como professora de História do Cinema, foi convidada a trabalhar com exibições de filmes no Centro Cultural Louis Braille, instituição dedicada ao desenvolvimento e inclusão social de pessoas com deficiência visual em Campinas (SP). Bell aceitou o convite com o intuito de levar consigo a Filosofia, trazendo como preceito a construção de conhecimento por todos os sentidos – e não somente pela percepção visual. Iniciou, assim, uma jornada pioneira na audiodescrição, reconhecendo, a suma importância do aprendizado adquirido durante o convívio com os usuários do Centro Cultural e seus múltiplos olhares.
Segundo a convidada, “a acessibilidade comunicacional na audiodescrição descreve imagens por meio do narrador. Tem como objetivo ampliar o entendimento de pessoas com deficiência visual, intelectual, baixa visão, disléxicos e idosos, em quaisquer situações onde as informações visuais sejam fundamentais ou relevantes para a compreensão (…) Seja em ocasiões onde o corpo e o espaço se comunicam, complementam ou até se desassociam”. A audiodescrição pode se aliar ao cinema, ao teatro, à dança e aos museus, entre muitas outras articulações.
Audiodescrição como criação artística
A arte, em suas diferentes manifestações, é um instrumento para estabelecer relações de pertencimento, mas para isso é necessária a garantia de acesso. Para Bell Machado, a “palavra” na audiodescrição é capaz de ampliar repertórios e estabelecer novas relações simbólicas, fundamentais para a fruição das artes.
Para nos ajudar a compreender a complexidade desse universo, Bell traz as seguintes reflexões: “Seria possível definir algo que seja de interesse de todos os videntes? Por exemplo: todo vidente gosta de cinema? A resposta é não”. Da mesma maneira, segundo ela, não é possível estabelecer definições em relação às pessoas com deficiência visual ou a qualquer outro público: generalizações não são cabíveis, pois a subjetividade de cada indivíduo é construída por diversas camadas que vão além da deficiência ou de qualquer outra característica. Só conhecemos uma pessoa e sabemos de seus interesses a partir do convívio: é com a troca que podemos aprender.
Além da subjetividade do público, temos que considerar também a subjetividade do audiodescritor. Para a convidada, a Audiodescrição pode ser entendida como uma criação artística que, portanto, perpassa a subjetividade de quem cria. É também como uma tradução intersemiótica, na qual os signos imagéticos são traduzidos para signos verbais. Não se trata de um exercício de interpretação, nem tampouco de resumo.
Bell Machado ressalta que um profissional de audiodescrição deve sempre atentar-se aos conteúdos, elementos e códigos do material a ser traduzido. Por exemplo, no caso do cinema, no qual a linguagem apresenta-se pela “forma” e “conteúdo”, sendo visuais e sonoros, a audiodescrição, como uma tradução visual, deve contemplar as características com as quais cada obra é pensada e construída. Considerando também elementos como posição da câmera, planos, aproximação e velocidade, pois são esses elementos que constroem sentido.
Entendemos, então, que o processo de elaboração da audiodescrição envolve muita pesquisa sobre o autor, a obra e seu universo. É a partir dessas pesquisas que pode se dar a construção de um roteiro que corresponda às qualidades da obra a que se dedica, assumindo características que vão desde o informativo até o poético. Após a elaboração, destaca ela, cada produto passa pela consultoria de um audiodescritor com deficiência visual.
A convidada explica que o processo de construção deve levar em consideração a ampliação de repertórios e vocabulários, a partir de relações simbólicas e escolhas de linguagem que incentivem espectadores e espectadoras a pensar e imaginar. Somente dessa maneira, afirma, a audiodescrição promove o desenvolvimento da autonomia dos indivíduos e inclusão cultural e social. Sendo assim, a principal preocupação da audiodescrição não se refere a que o usuário entenda a imagem descrita com exatidão, mas sim garantir a autonomia e possibilidades de imaginar.
Possibilidades de tradução e percepção
Ao associarmos as questões apresentadas até aqui ao conceito de tradução, podemos nos afastar da ideia de tradução como algo imparcial e isento. No caso, a audiodescrição como tradução, conforme defendido por Bell, não é neutra, porque o olhar e a percepção não são neutros. Por exemplo: ao olharmos uma imagem de qualquer natureza, ou ouvirmos o som de uma palavra, música ou ruído, ou até mesmo ao tocarmos determinados objetos e texturas, automaticamente uma série de significados nos atravessam – seja pelo aspecto mais prático da comunicação, como o efeito causado por um símbolo de trânsito ou som de uma buzina, seja por construções culturais e sociais nas quais estamos inseridos ou ainda pelos aspectos subjetivos pelos quais somos permeados, sempre relacionados aos nossos repertórios individuais e memórias afetivas.
Poderíamos criar um paralelo entre essa operação e as nossas relações com a arte? A reação de uma pessoa diante de uma obra de arte sempre será única, fruto da própria cultura, de repertórios anteriores e de uma série de questões sociais, entre as quais a oportunidades de acesso. Nesta reação, é muito comum o impulso de querer perceber e apreender usando outros sentidos, conforme nos atesta o famoso tabu sobre o “tocar nas obras”.
Geralmente proibido em espaços como museus e centros culturais, o toque é um recurso muito natural entre as crianças. Conforme crescemos e nos adaptamos à cultura e às normas institucionais, no entanto, passamos a reprimir essa vontade, moldando nosso comportamento de acordo com o que socialmente se espera.
Outro ponto relevante diz respeito à disponibilização de recursos táteis para pessoas com deficiência. Tais recursos, entretanto, na maioria das vezes não correspondem à experiência da obra, seja pela escolha equivocada do material e tamanho ou pela ausência de uma consultoria que possa validar sua efetividade. Da mesma maneira, pode servir como limite a restrição de uso desses recursos apenas para determinados grupos.
Parece importante destacar, por fim, que ao limitar nossa experiência dentro de uma exposição de arte apenas à contemplação, perdemos sempre outras possibilidades de percepção, diálogo e fruição. Como bem colocado pelo filósofo e pedagogo espanhol Jorge Larrosa Bondía, a experiência é aquilo que nos toca e nos acontece, enquanto sujeitos. E a audiodescrição, nesse sentido, mostra-se como uma rica possibilidade de educar nosso olhar e ampliar nossas experiências com a arte, beneficiando não somente as pessoas com deficiência visual.