[a recusa como prática pedagógica] é um texto-colagem produzido pela Escola da Floresta para leitura-performance em voz alta, individual ou coletivamente. Esse texto-colagem é formado por textos diversos e toma como ponto principal o personagem de Herman Melville: Bartleby, o escrivão. Através de sua fala “eu preferiria não”, esse texto vai se delineando.
Para ler esse texto-colagem, existem, inicialmente, duas propostas:
1. ler do início ao fim todo o seu conteúdo;
2. ler apenas os trechos destacados em vermelho.
Existe ainda a desejável possibilidade de imaginar e inventar outras maneiras de lê-lo, inclusive adicionando e retirando trechos, ou trocando-os de lugar.
Por que falar dos primitivos, se é da nossa vida que se trata?
Deleuze e Guattari
Por que falar dos primitivos? Porque é da nossa vida que se trata.
Eduardo Viveiros de Castro
Totem
André Vallias
sou guarani kaiowá munduruku, kadiwéu arapium, pankará xokó, tapuio, xeréu
yanomami, asurini cinta larga, kayapó waimiri atroari tariana, pataxó
kalapalo, nambikwara jenipapo-kanindé amondawa, po guara kalabaça, araweté
migueleno, karajá trabajara, bakairi gavião, tupinambá anacé, kanamari
deni, xavante, zoró aranã, pankararé palikur, ingarikó makurap, apinayé
matsés, uru eu wau wau pira-tapuya, akuntsu kisêdjê, kinikinau ashaninka, ma pu
sou wari’, nadöb, terena puyanawa, paumari, wassu-cocal, warekena puroborá, krika ka’apor, nahukuá
jiahui, baniwa, tembé kuikuro, kaxinawá naruvotu, tremembé
kuntanawa, aikanã juma, torá, kaxixó siriano, pipipã rikbaktsá, karapotó
krepumkateyê, aruá kaxuyana, arikapu witoto, pankaiuká tapeba, karuazu
desana, parakanã jarawara, kaiabi fulni-ô, apurinã charrua, issé, nukini
awe , nawa, korubo miranha, kantaruré kari ana, marubo yawalapi , zo’é
parintintin, katukina wayana, xakriabá yaminawá, umutina avá-canoeiro, kwazá
sou enawenê-nawê chiquitano, apiaká manchineri, kanoê pirahã, kamaiurá
jamamadi, guajajara anambé, ngui-botó, yudjá, kambeba, arara aparai, jiripancó
krenak, xerente, cuna krahô, tukano, trumai patamona, karipuna hixkaryana, waiwai
katuenayana, baré menky manoki, truká kapinawá, javaé karapanã, panará
sakurabiat, kaingang kotiria, makuxi maxakali, taurepang aripuaná, paresi
iranxe, kamba, tuxá tapirapé, wajuru mehinako, kambiwá ariken, pankararu
sou guajá, djeoromitxi koiupanká, tunayana ikolen, dow, wajãpi amawáka, barasana
kubeo, kulina, ikpeng ofaié, hupda, xipaya suruí paiter, xokleng tupiniquim, kuruaya
zuruahã, galibi tsohom-dyapa, waujá xukuru, kaxarari tuyuka, tumbalalá
borari, amanayé hi-merimã, aikewara kujubim, arikosé arapaso, turiwara
kalankó, pitaguary shanenawa, tapayuna coripaco, kiriri
kaimbé, kokama, makuna matis, karo, banawá chamacoco, tenharim tupari, krenyê, bará wapixana, oro win
sateré mawé, guató xetá, bororo, a kum ye’kuana, riyó canela, mura, borum
Imaginar gestos que barrem o retorno da produção pré-crise
Bruno Latour
Tradução de Deborah Danowisk
Domingo, 29/03/2020
E, entretanto, é agora que devemos lutar para que, uma vez terminada a crise, a retomada da economia não traga de volta o mesmo velho regime climático que temos tentado combater, até aqui em vão.
aproveitarmos a crise sanitária para descobrir outras formas de adentrar a mutação ecológica,
A primeira lição do coronavírus é também a mais espantosa.
Contra a globalização, uma globalização ainda maior: se o objetivo é conectar bilhões de humanos, os micróbios estão aí para isso mesmo!
Não devemos esquecer que o que torna os adeptos da globalização tão perigosos é que eles sabem que perderam, sabem que a negação das mudanças climáticas não poderá continuar indefinidamente, que não há mais nenhuma chance de conciliar seu “desenvolvimento” com os vários “envelopes” do planeta com os quais a economia terá que se haver mais cedo ou mais tarde.
Se tudo para, tudo pode ser recolocado em questão, infletido, selecionado, triado, interrompido de vez ou, pelo contrário, acelerado.
A última coisa a fazer seria voltar a fazer tudo o que fizemos antes.
Quanto o famoso coronavírus, em sua maneira única de globalizar o planeta. O que o vírus consegue com a humilde circulação boca a boca de perdigotos – a suspensão da economia mundial – nós começamos a poder imaginar que nossos pequenos e insignificantes gestos, acoplados uns aos outros, conseguirão: suspender o sistema produtivo.
Ao nos colocarmos esse tipo de questão, cada um de nós começa a imaginar “gestos-barreira”.
Não se trata mais de retomar ou de transformar um sistema de produção, mas de abandonar a produção como o único princípio de relação com o mundo.
Não se trata de revolução, mas de dissolução.
Quanto aos adeptos da globalização, esses parecem ter uma ideia muito clara do que querem ver renascer após a retomada: a mesma coisa, só que pior, com a indústria petrolífera e os gigantescos navios de cruzeiro como bônus. Cabe a nós opor a eles nosso contrainventário.
Se, em apenas um ou dois meses, bilhões de humanos somos capazes, ao apito do árbitro, de aprender o novo “distanciamento social”, de nos afastar uns dos outros para sermos mais solidários, de ficar em casa para não sobrecarregar os hospitais, podemos perfeitamente imaginar o poder transformador desses novos gestos, barreiras erguidas contra a repetição de tudo exatamente como era antes ou, pior, contra uma nova investida mortífera daqueles que querem escapar de vez à força de atração da Terra.
Aproveitemos a suspensão forçada da maior parte das atividades para fazer um inventário daquelas que gostaríamos que não fossem retomadas e daquelas que, pelo contrário, gostaríamos que fossem ampliadas.
Bartleby, o escrevente
Herman Melville
páginas 45, 47 e 49
Alguns dias depois disso, Bartleby concluiu quatro longos documentos, quadruplicatas de um testemunho de uma semana de duração tomado diante de mim no Supremo Tribunal. Era preciso conferi-los. Era um processo importante, e era imperativo que houvesse grande precisão no trabalho.
Com tudo pronto, chamei Turkey, Nippers e Ginger Nut da sala ao lado, pensando em distribuir as cópias entre os meus quatro funcionários e ler a partir do original.
Consequentemente, Turkey, Nippers e Ginger Nut sentaram-se em fila, cada um com seu documento em punho, quando chamei Bartleby para se unir a esse interessante grupo.
– Bartleby! Depressa, estou esperando.
Ouvi os pés de sua cadeira arrastando-se lentamente no chão sem tapete, e ele apareceu a seguir, caindo de pé à entrada de seu eremitério.
– O que deseja? – perguntou ele, calmamente.
– As cópias, as cópias – disse eu, apressado. – Vamos examiná-las. Aqui – e alcancei-lhe a quarta cópia.
– Preferia não. – disse ele, desaparecendo tranquilamente atrás do biombo.
Por alguns instantes, vi-me transformado numa estátua de sal, parado diante da leira de funcionários sentados. Depois de me recuperar, avancei em direção ao biombo e exigi que ele me explicasse a razão para tal extraordinária conduta.
Por que você se recusa?
– Preferia não.
Com qualquer outro homem, eu teria ficado imediatamente irado, desdenhado tudo o que viesse a ser dito e enxotado-o de maneira desrespeitosa de perto de mim. Mas havia algo em relação a Bartleby que não apenas me desarmava estranhamente, como, de um modo maravilhoso, tocava-me e desconcertava-me.
Comecei a argumentar com ele:
– São suas próprias cópias as que estamos prestes a examinar. Isso vai poupar trabalho a você, porque uma única checagem vai dar por finalizados seus quatro documentos. Sempre fazemos isso. É dever de cada escriturário ajudar a conferir sua própria cópia. Não é assim? Você não vai falar? Responda!
– Prefiro não. – replicou ele num tom suave.
Tive a impressão de que, enquanto eu estivera dirigindo-lhe a palavra, ele refletira cuidadosamente sobre cada uma de minha declarações, compreendera completamente seus significados e não pudera contrariar a conclusão irresistível, mas, ao mesmo tempo, alguma consideração superior prevalecera, e ele acabara respondendo daquela maneira.
– Você está decidido, então, a não cumprir com minha solicitação… uma solicitação usual e de bom senso?
Rapidamente ele deu a entender que, dessa vez, meu julgamento estava perfeito. Sim: sua decisão era irreversível.
Cosmopolítica
Isabele Stengers
Como apresentar uma proposição cujo desafio não é o de dizer o que ela é, nem de dizer o que ela deve ser, mas de fazer pensar; e que não requer outra verificação senão esta: a forma como ela terá “desacelerado” os raciocínios cria a ocasião de uma sensibilidade um pouco diferente no que concerne aos problemas e situações que nos mobilizam?
Em outras palavras, essa proposição não tem estritamente sentido algum na maioria das situações concretas dos dias de hoje, mas ela se propõe a acompanhar aqueles e aquelas que já realizaram o “movimento político” associado à ecologia política, e que aprenderam a rir não das teorias, é claro, mas da autoridade a elas associada.
Mas eu corria o risco de fazer dessa questão política uma chave para a questão que eu tinha nomeado de “ecologia das práticas”, invenção das maneiras que poderiam ensinar a fazer coexistir práticas diferentes, respondendo a obrigações divergentes. Eu corria o risco de esquecer que a categoria de política com a qual eu trabalhava faz parte de nossa tradição, é emprestada das fontes de invenção própria a essa tradição.
[…] trata-se justamente de desacelerar a construção desse mundo comum, de criar um espaço de hesitação a respeito daquilo que fazemos quando dizemos “bom”. Quando se trata do mundo, das questões, ameaças e problemas cujas repercussões se apresentam como planetárias, são os “nossos” saberes, os fatos produzidos pelos “nossos” equipamentos técnicos, mas igualmente os julgamentos associados a “nossas” práticas que estão na linha de frente. A boa vontade, o “respeito pelos outros” não são suficientes para apagar essa diferença, e negá-la em nome de uma “igualdade de direito” de todos os povos da terra não impedirá, posteriormente, de condenar a cegueira fanática ou o egoísmo daqueles que se negariam a admitir que não podem se esquivar das “questões planetárias”. A proposição cosmopolítica é mesmo incapaz de dar uma “boa” definição dos procedimentos que permitem alcançar a “boa” definição de um “bom” mundo comum. Ela é “idiota” no sentido de que se dirige àqueles que pensam sob essa urgência, que ela não nega de forma alguma, mas vai sussurrando que, talvez, exista aí algo de mais importante.
A proposição cosmopolítica, portanto, nada tem a ver com um programa, mas muito mais com a passagem de um pavor, que faz balbuciar as seguranças.
I would prefer not to.
o narrador, o homem da lei que veio a tomar Bartleby como escrivão, é uma figura que retrata o que a “cosmopolítica” deve evitar. Ele insiste obstinadamente, ele quer que Bartleby saia de sua abstenção, que ele se junte ao mundo comum, onde os humanos aceitam se comprometer. Pouco a pouco ele vai se tornando quase louco, tomado pelo próprio jogo, e escolhe esvaziar os lugares, já que Bartleby preferiu não mais viver em lugar algum senão no próprio escritório. E fazendo isso ele deixa aos novos locatários a responsabilidade da qual ele não foi capaz: forçar Bartleby a fazer o que ele prefere não fazer.
Ele não pode imaginar outra questão senão essa de um retorno de Bartleby a um mundo comum.
É preciso ser cauteloso quanto à boa vontade individual. Conferir uma dimensão “cosmopolítica” aos problemas que pensamos sob o modo da política não se refere ao registro das respostas, mas coloca a questão sobre a maneira como podem ser escutados “coletivamente”, no âmbito do agenciamento através do qual se propõe uma questão política, o grito de pavor ou o sussurro do idiota.
Agenciar o conjunto de maneira tal que o pensamento coletivo se construa “em presença” da questão insistente que eles fazem existir. Dar a essa insistência um nome, cosmos, inventar a maneira mediante a qual a “política”, que é a nossa assinatura, poderia fazer existir seu “duplo cósmico” [doublure cosmique], as repercussões disso que vai ser decidido, disso que constrói suas razões legítimas, sobre isso que permanece surdo a essa legitimidade, eis a proposição cosmopolítica.
A proposição vai, então, no sentido de uma “autorregulação”, mas ela tem por interesse colocar em cena a questão do “auto”, de dar a sua plena significação ao desconhecido da questão: o que decidiria o pesquisador “por ele mesmo”, se esse “ele mesmo” estivesse ativamente despojado daquilo que as decisões atuais parecem ter necessidade.
Crítica e Clínica
Gilles Deleuze
Bartleby “torce a língua” dos outros.
Uma produção pública, coletiva, de saberes em torno de situações que nenhuma expertise particular pode ser suficiente para definir, e que requerem a presença legítima ativa, objetora e propositiva, de todos que estão “implicados”.
Esse desafio é político, e nós podemos apenas entrever o alcance e amplitude das suas consequências.
construir uma experiência e uma memória ativas, compartilháveis, criadoras de exigências políticas.
O corpo “sabe mais”, ele é o cosmos, um cosmos realizado, não aquilo que insiste no sussurro do idiota, daquele que duvida. E, de maneira previsível, a intuição, o instinto, o sentir imediato serão celebrados contra os artifícios do pensamento.
Se existe arte, é porque os corpos químicos são definidos como “ativos”, mas sua atividade não pode ser atribuída a eles, ela depende das circunstâncias e pertence à arte dos químicos criar tipos de circunstâncias nos quais os corpos se tornarão capazes de produzir o que o químico deseja: arte de catálise, de ativação, de moderação.
Como o processo de emergência da decisão política pode, ao mesmo tempo, ser ativamente protegido da ficção segundo a qual “os seres humanos de boa vontade decidem em nome do interesse geral”, e ativado pela obrigação de colocar o problema associado ao vírus ou ao rio “em presença” daquele que, do contrário, correria o risco de ser desqualificado como “interesse egoísta”, nada tendo a propor e criando um obstáculo à “conta comum” em formação?
Eu escolhi o termo “consulta”, pois ele pode ser conveniente tanto no domínio político como ali onde existem invisíveis que não partilham as razões humanas, que são insensíveis aos “compromissos”, mas que cabe consultá-los, pois a sua existência significa que os humanos não são os detentores daquilo que faz sua “identidade”.
O perigo é de se reencontrar, como o homem da lei em face a Bartleby, em face daqueles a quem gostaríamos, a toda força, de fazer interlocutores, produtores de contraproposições construtivas, enquanto eles prefeririam simplesmente que os deixássemos tranquilos.
O cosmos, tal como ele figura na proposição cosmopolítica, não possui representante, ninguém fala em seu nome e ele não pode ser feito objeto de nenhum procedimento de consulta. O seu modo de existência se traduz pelo conjunto dos modos de fazer, dos artifícios cuja eficácia é a de expor aqueles que terão que decidir, de constrangê-los a esse pavor que eu associei ao grito de Cromwell. Em resumo, trata-se de abrir a possibilidade de que ao murmúrio do idiota se responda não, por certo, com a definição “daquilo que há de mais importante”, mas com a desaceleração sem a qual não pode haver criação.
Evidentemente, nunca é demais ressaltar, essa proposição nada tem a ver com um programa, mas não é inútil enfatizar que tudo aquilo que, de forma muito evidente, lhe faz obstáculo, associando-a a uma utopia, é igualmente o que dificulta colocação em política, no sentido clássico, de nossos problemas. E aí está, talvez, a sua eficácia aqui e agora. Ela não inova em nada o diagnóstico dos obstáculos, daquilo que condena a nossa política a ser nada mais do que uma arte (mais próxima, antes, da magia negra), de conduzir os rebanhos humanos, mas ela pede àqueles que lutam que não entreguem a essa luta o poder de definir uma unidade advinda, enfim, do gênero humano.
Nós não somos confiáveis!
Pensar a partir dessas consequências ditas secundárias, temerosas em face à ideia de que um senso comum qualquer possa aplainar, pacificar a questão sempre delicada, hesitante entre a guerra e a paz, que é todo encontro entre heterogêneos, não é certamente responder à urgência. É mesmo idiota, não apenas do ponto de vista das mobilizações proclamadas em nome da urgência, mas também em face da urgência ela mesma, inegável. É preciso ousar dizer que o murmúrio do idiota cósmico é indiferente ao argumento da urgência como a qualquer outro. Ele não o nega, ele apenas coloca em suspenso os “e portanto…” dos quais nós, tão plenos de boa vontade, tão empreendedores, sempre prontos a falar por todos, somos os mestres.
Floresta é o nome do mundo
Ursula K Le Guin
[…] Athshe, que significa Floresta e Mundo. Assim como Terra, ou Terran, significa tanto solo quanto planeta, dois significados em um. Mas, para os athsheanos, o solo, o chão, a terra, não era o lugar ao qual os mortos retornavam e pelo qual os vivos viviam; a substância de seu mundo não era a terra, mas a floresta. O homem terreno era barro, pó vermelho. O homem athsheano era ramo e raiz.
Cosmopolítica animal
Juliana Fausto
*paragráfos finais de cada capítulo da tese
1
Então, o que é política? É um modo de intra-ação do qual resultam não apenas sujeitos, mas espaços coabitados; é abrir-se às intrusões do fora; é sair das dualidades que articulam seus termos por denegação e hierarquização; é co-constituir mundos conjuntamente, por entrelaçamentos situados; é dar voz a quem historicamente não a teve e examinar os próprios olhos; é cosmopolítica; é um tipo de feitiçaria cósmica que, ao transformar locais de habitação, visa a transformar modos de habitar; é arriscar-se em arranjos provisórios; é compreender que tudo isso pode ainda falhar e começar de novo.
2
Então, o que é política? É uma multiplicidade irredutível de modos de coabitar e co-constituir o mundo diferente e assimetricamente; é compreender que só existem políticas cósmicas, ainda que em negação, isto é, que toda política diz respeito a mais que um grupo, mais de um povo ou espécie, ainda que se denegue nela a participação passiva e/ou ativa desses outros; é a saúde do instinto; é um jogo ou uma brincadeira não-inocente que diz respeito à diferença entre fair play e bullying; é habitar o perigo de que essa brincadeira se torne combate; é evitar tomar por objetos-brinquedos seres que poderiam agir como sujeitos-jogadores; é um modo mutante de criação e uso de mundos no sentido de mapa e território que depende sempre de mais de um para que se entre em uma zona de indiscernibilidade que gesta consequências concretas para todos os envolvidos.
3
Então, o que é política? É a arte de criar saídas; é devir-animal e devir-com animais; é fabular diante de e com povos menores; é cultivar uma imaginação simpática, permitindo-se invadir por espíritos e corpos outros, multiespecíficos; é não aspirar à inocência, mas pensar e agir responsavelmente; é interessar-se pelo mundo, estando aberto e disponível, afetando e sendo afetado pelos outros; é inventar famílias e comunidades monstruosas; é se sujar em admiração.
4
Então, o que é política? É o desejo da vida, em suas aventuras e experiências de diferença, mistura, morte, descontinuidade e continuidade; é contar, herdar, abandonar e criar histórias que articulam passados, presentes e futuros novos; é um espaço cheio de sangue e fantasmas; é aliança e fluência por entre escombros; é a invenção e a sustentação do mundo por seus seres; não é a barragem de fluxos; não é a uniformização do planeta; não é, definitivamente, provocar o desaparecimento em massa de outros povos e espécies. A extinção é o seu aniquilamento.
Tornar-se selvagem
Jerá Guarani
Gosto de chamar mais pessoas para serem selvagens. O nosso planeta, do jeito que está, está sofrendo muito, está chorando, está gritando, e, por estarmos integrados com ele, vamos ter que começar a viver, a ver, a saber e a ter que enfrentar muitas coisas negativas também. Fumo cachimbo, faço fogo no chão, cozinho, durmo e acordo com a cantoria dos passarinhos, e tudo isto é tão simples, mas é tão bonito, tão lindo, tão importante.