Desde os primórdios, o ser humano encontrou no corpo útil ferramenta de comunicação e contato com o mundo, de modo que o gesto sonoro, tratado como forma de contato, certamente não é uma prática recente. A percussão corporal é uma técnica que consiste em um jogo de combinações de sons produzidos com o corpo. Nesse jogo, sequências rítmicas são executadas por meio de combinações entre palmas, estalos com os dedos e batidas no peito, entre outros movimentos. Esses sons reproduzem ritmos populares brasileiros como o baião e o samba, e também internacionais, como o rock. A prática da percussão corporal remonta a grupos populares brasileiros, tais quais muitos povos ribeirinhos e camponeses, e dada a complexidade e a diversidade cultural da formação nacional, há diversas fontes e origens associadas à prática da percussão corporal.
Convidado a conduzir o Múltiplo Ancestral de janeiro de 2020 no CCBB DF, o grupo Batucadeiros nasceu em Recanto das Emas, cidade situada na região administrativa de Brasília, a partir de um projeto para crianças e adolescentes. Segundo André Soares, professor e um dos mais antigos alunos do Batucadeiros, o grupo passa agora por sua segunda geração, constituindo-se como um movimento de resgate da cidadania e da construção identitária de cada integrante. Conforme nos lembra André Soares, batucar com o corpo sugere criação e reflexão sobre o fazer musical artístico, tanto em sua dimensão individual quanto também na dimensão coletiva.
O coletivo torna possível
Sala cheia. Olhos infantis e adultos aguardam o grupo. Olhares de admiração revelam a expectativa por uma apresentação. “Musicar com o corpo, como é possível?”. Talvez esses olhares não estivessem preparados, entretanto, para a surpresa que tão naturalmente foi chegando e se incorporando aos nossos corpos.
Enquanto os Batucadeiros se apresentam, “barulham” a sala e nos convidam sutilmente, sem falas. Olhos nos olhos, seguimos seus movimentos. Sorrimos, os acompanhamos, e mesmo um estalo com a boca já não é um estalo solitário. Surge uma palma, e seguimos ritmados sob o comando do grupo. Em um piscar de olhos, somos todos batucadeiros. Pouco a pouco, surgem sorrisos de todas as idades, e nos movimentamos ritmados pela sala, que agora parece outra, não mais fria nem silenciosa. Estamos, agora, inebriados com a surpresa da capacidade de também fazer. Magia pura!
A apresentação se mescla, então, com a oficina. Não se sabe quando começa uma e termina a outra: sabemos, sim, que nosso corpo se tornou orquestra. Orquestra, porque sozinhos não poderíamos musicar naquela potência. Sozinhos, teríamos perdido a oportunidade de mirar olhos desconhecidos, compartilhando um momento de crescente intimidade.
A pedagogia no processo
Historicamente, a educação musical esteve restrita ao ensino pragmático de uso do instrumento. Muitos educadores, no entanto, têm se debruçado sobre na ampliação do conceito de educação musical não se restringindo mais à técnica pura e simplesmente. A esse respeito, o educador musical Keith Swanwick defende a chamada Teoria Espiral, que associa diretamente o processo de compreensão musical ao processo de desenvolvimento da linguagem: primeiro, a criança emite sons e balbucia; à medida em que vai crescendo, sua linguagem e percepção se tornam mais complexas.
Pesquisador em percussão corporal desde 1995 e integrante do grupo Barbatuques, Fernando Barba diz que os principais objetivos didáticos da percussão corporal são automatizar a arritmia, ampliar o repertório de sons corporais, produzir ritmos e melodias, incentivar a capacidade de criação musical e incentivar atitudes lúdicas e cooperativas, além de promover a percepção corpórea em sua globalidade. Não por acaso, são justamente experiências como essas que acessamos ao presenciar a ação acontecendo.
Metodologicamente falando:quando torna a ação didática a partir do contato visual com o público, o grupo nos sugere a repetição de determinados movimentos, ao mesmo tempo em que nos convida a perceber, simultaneamente, a composição coletiva desses sons. Ao alcançarmos momentos de sintonia, nos percebemos parte de uma mesma composição, identificando ainda a potência de cada corpo dentro do processo. Partimos, no entanto, rumo a essa experiência viva de composição no instante, da ferramenta mais básica e barata: nossos próprios corpos, em suas múltiplas formas e potencialidades.