Com o foco nas ancestralidades negra e indígena do território de Minas Gerais, o Múltiplo Ancestral com Maurício Tizumba foi realizado em outubro de 2021 e acabou por ser um convite para reconhecer e ler essa ampla partitura cultural que forma grande parte de nossa identidade brasileira.
Evocando principalmente a riqueza cultural e o modo como essas matrizes se relacionam com o meio ambiente e a ecologia, o convidado nos traz uma reflexão que perpassa tempos, espaços e ancestralidades que podem estar imbuídas em um mesmo território. A partir disso, nos convida a perceber como um único território brasileiro – seja um bairro, uma cidade ou um estado – pode abarcar pluralidades únicas e reinvenções culturais.
Com vasta pesquisa nos elementos culturais da mitologia africana e dos povos originários da nossa terra, Maurício Tizumba é um artista musical nascido em Minas Gerais que investiga as potências e as tangentes carregadas por seu território mineiro, desdobrando essa pesquisa em sua identidade como sujeito e como artista.
Tizumba é ainda um dos criadores da Companhia Burlantins, coletivo de artes cênicas sediado em Belo Horizonte cujo trabalho é marcado pela combinação entre música e teatro de rua. Seja dentro ou fora do coletivo, Tizumba possui como característica marcante a irreverência aliada a uma constante preocupação com o meio ambiente.
Provindos de uma religiosidade ancestral
Ao abrir sua apresentação com um canto para Exu, Tizumba evoca a partir dessa entidade africana uma paisagem onde os caminhos se abrem para o novo, assim como para as comunicações e trocas.
Nas mitologias africanas dos Iorubás/Nagôs, Exu é a divindade mensageira relacionada ao início dos tempos: é um dos primeiros seres a nascer, e por ele a fala e o movimento acontecem. Sem Exu, nada anda ou se comunica, e por isso, em todos os seus ritos e manifestações, ele é sempre o primeiro a ser chamado.
Laroyê Laroyê Exu
Laroyê é uma saudação feita a essa entidade mensageira, tanto na Umbanda como no Candomblé. Em uma tradução mais livre, Laroyê é um modo de “Salve!” utilizado nas entregas de oferendas ou como pedido de proteção, especificamente para Exu e as entidades de sua falange. Falanges, por sua vez, são grupos de entidades ancestrais que se correlacionam e se apresentam sob um determinado arquétipo.
Aqui no Brasil, essa entidade veio a compor grande parte da religiosidade de matriz africana que aqui se formou. É importante frisar que os Povos Tradicionais de Matriz Africana não se constituem de modo homogêneo e que essas religiosidades nascidas em nosso território são resultado de mecanismos de resistência e do ajuntamento de diferentes povos africanos trazidos aqui como trabalhadores escravizados.
Para que fosse possível a permanência desses cultos, divindades de diferentes localidades de África aqui foram unidas em um único culto e religiões. Das matrizes africanas mais presentes no Brasil podemos destacar as de influência Iorubá/Nagô, as provindas de culturas Jeje-Fon e, por fim, os Bantu.
Corpo é território
Podemos notar que na cantiga entoada por Maurício a Exu, ele evoca também o termo Pombogirê, nome dado a essa entidade em outras localidades de África, como acontece nos cultos Bantu. Com isso, nos mostra uma evidência da miscigenação de matrizes africanas em um mesmo território – assim como pode acontecer em um mesmo corpo.
Em Minas Gerais e outras localidades do Sudeste, a maioria dos corpos trazidos partiram da África sub-equatorial, principalmente de Angola, Congo e Moçambique. Por aqui, a influência do povo Bantu germinou fortemente, impulsionando processos religiosos, linguísticos e culturais e resultando em muitos elementos identitários brasileiros de origem africana, como o samba e suas várias vertentes.
Os Bantu possuem uma religiosidade que evoca tanto a importância das entidades ligadas a energia da natureza, por eles chamadas de Inquices, como acredita no culto aos ancestrais de cada ser humano. Quando essa religiosidade aqui se formou, abraçou também as ancestralidades indígenas.
Sendo assim, cada Laroyê dito pelo corpo de Tizumba evoca a família ancestral dos povos africanos e dos povos indígenas, levanta seu hoje sem esquecer do seu ontem e dos que lá estiveram.
Aos senhores da terra, seus caboclos e pretos velhos
Para memorar os povos originários brasileiros e a riqueza dos povos africanos para cá trazidos, Tizumba chama a Roda dos Caboclos e dos Pretos Velhos e pede licença às energias que aqui já estavam muito antes da chegada de nossa geração.
Os Caboclos e Pretos Velhos são linhas de trabalho de entidades cultuadas principalmente na Umbanda. Sua origem está ligada as pessoas que, após o desencarne, se tornam guias de luz, voltando à Terra para prestar caridade ao próximo – e tais guias correspondem respectivamente aos espíritos de índios e de velhos africanos escravizados que atravessaram o mar.
Para relembrar esses corpos indígenas do ontem e do hoje, Tizumba traz ainda para a gira alguns povos indígenas que vivem atualmente no estado de Minas Gerais: Aranã, Krenak, Maxakali Pankararu, Pataxó, Pataxó hã-hã-hãe e Puris, entre muitos outros.
Caminhos de resistência
Essas práticas de culto derivam de processos sincréticos de resistência, organizados ainda no séc XIX. Como forma de manter vivos os ritos de raiz Bantu, os povos que os praticavam acabaram incorporando aos seus ritos e crenças elementos da religiosidade de matriz cristã (catolicismo), do Espiritismo Kardecista e também ligados a práticas nativas indígenas, dando origem ao que se conhece como Cabula Banto e, posteriormente, à Umbanda.
Ao ver o vídeo, é possível perceber como aqui no Brasil, “Seu Tupinambá” começou a andar no mesmo espaço do “Pai Joaquim”. Juntos, eles puderam manter vivas certas tradições de povos e culturas exterminadas pelos colonizadores. Para isso, criaram locais e centros onde vive o culto aos ancestrais, lado a lado a uma constante consciência de que somos parte da natureza, assim como seus usuários e guardiões.
A partir de heranças culturais como o candomblé, a umbanda, as festas de reinado e o congado, esses seres e suas formas de culto nos mostram ainda hoje seus poderes e conhecimentos sobre uma ecologia ativa e constante. Ao cultuar nossas divindades e suas falanges, acabamos, afinal, por cantar para os mares, para a lua, para as matas, os rios e as cachoeiras.
Ei, viva Deus e viva mundo
Ó, que beleza a natureza que Olorum criou
Ei, viva Deus e viva mundo
Ó, que beleza a natureza que Olorum criou
A mata de Oxossi
O trovão de Xangô
O vento de Iansã
Um lindo lago pra Nanã, ooh
Cachoeira de Oxum
Lua clara de Ogum
Mar azul de Iemanjá
Que coloriu a Terra inteira
Com o arco-íris de Oxumaré, ooh
Hey-ei, viva Deus e viva mundo
Ó, que beleza a natureza que Olorum criou
(“A Criação”, de Maurício Tizumba, Patricia Lobato e Renato Motha)