”Me explica rapidinho?”: quem de nós, mediadores culturais, já não se deparou com essa pergunta por parte de um visitante em uma exposição? Por trás dela, entretanto, escondem-se muitas camadas de um trabalho invisível que envolve a articulação de temas, conteúdos, acervos e statements curatoriais – sobre os quais, com muito humor, comenta a artista Pompea Tavares na ilustração acima. Para além das atividades de mediação junto ao público, os bastidores do trabalho educativo realizado pelos coordenadores pedagógicos é também mote da conversa sobre a qual discorre o presente relato.
De que modos educadoras e educadores têm buscado envolver pessoas de variadas idades e interesses em atividades artísticas e patrimoniais em projetos de mediação cultural? O que a mediação cultural aprendeu com seus públicos sobre a participação a distância? Aonde podem chegar nossas ações de mediação cultural e que tipo de comunidades virtuais estamos cultivando?
No dia 06 de outubro de 2021, o curso Transversalidades promoveu uma edição especial que reuniu coordenadores pedagógicos das quatro praças do Programa CCBB Educativo – Arte & Educação. O encontro trouxe ao público alguns resultados de uma série de conversas em torno dos desafios metodológicos enfrentados pelas equipes educativas de instituições culturais entre 2020 e 2021, assim como as estratégias, as metodologias e os resultados de pesquisas em mediação realizadas por meio de ações com escolas, instituições parceiras e públicos espontâneos, seja em formato virtual ou presencial, em encontros síncronos e assíncronos.
Participaram da conversa a pesquisadora Valquíria Prates, responsável pela coordenação pedagógica nacional do programa, além dos coordenadores locais Cauê Donato (SP), João Andrade (BH), Milton Lira (BH), Pompea Tavares (RJ) e Tatiana Duarte (DF).
Cozinhando a doze mãos: como fazer junto a mediação?
Receita para um omelete educativo: misture uma dúzia de desejos e bata no liquidificador, reserve em quatro porções e salpique ideias a gosto. Unte a panela com encontros e processos e frite por quatro anos: agora basta servir ao público sobre a mesa de um encontro Transversalidades.
Para a artista-educadora Valquíria Prates, o “fazer junto” da mediação é um processo análogo ao cozinhar. Nessa receita a várias mãos, encontros como o que narramos aqui são uma forma de “abrir a cozinha” para que todes os interessados em processos híbridos de educação em artes e cultura, assim como em suas ferramentas e possibilidades, tenham acesso a saborear um pouco do prato preparado a várias mãos pela equipe de coordenadores pedagógicos do programa, que desde 2018 vêm se reunindo e cozinhando juntes um programa educativo realizado em quatro importante centros culturais do país.
Nas falas a seguir, podemos encontrar um generoso recorte dos bastidores invisíveis de pesquisa, invenção, planejamento e prática – processos que perpassam o universo “daquilo que ninguém vê na hora que uma visita, uma oficina ou um material de apoio aparece ou ocorre publicamente”. Como também destaca Valquíria, a conversa é menos sobre o que é a coordenação pedagógica em si, e mais sobre como o grupo de convidados entende, ao atuar como um coletivo de educadores, os desafios, as escolhas e os caminhos trilhados ao longo de uma invenção constante do “fazer junto”, considerando a mediação cultural no contexto atual.
Produzir presença na distância: O que mostrar em uma visita?
“Colocar em cena tem mais efeito sobre a nossa experiência do que a explicação”. Em sua fala, o filósofo-educador João Andrade reforça a importância de que os profissionais de mediação cultural coloquem em evidência suas posições. Para ele, é importante compartilhar com os colegas e os públicos o universo de desejos, ideias, referências e sujeitos que amparam e instrumentalizam o seu pensar e o seu fazer mediação cultural.
João nos lembra de que não há uma formação específica para a coordenação pedagógica no campo não-formal: pelo contrário, lidamos a todo tempo com repertórios de áreas diversas daquelas que marcam nossa formação. É justamente no cruzamento entre múltiplos saberes, experiências e desejos, portanto, que cada corpo-sujeito carrega para o corpo-pedagógico coletivo, que tecemos o “fazer junto” da mediação. No caso de João, esse corpo-sujeito é atravessado pela filosofia, e é nela que o educador encontra caminhos para lidar com a seguinte pergunta: “O que mostrar em uma visita virtual?”.
Tecendo diálogos com as obras de Didi Huberman e Hans Ulrich Gumbrecht, o educador-filósofo nos convida a refletir sobre o sentido das imagens em uma visita virtual e também sobre aquilo que escolhemos mostrar – ou não mostrar – no momento de um encontro.
Cartografar o sensível: o que se cria a partir da pesquisa?
Para a artista-educadora Tatiana Duarte, a mediação cultural constitui uma prática cartográfica. “Mapear”, “pesquisar” e “itinerar” são as três palavras escolhidas por Tatiana para nos contar um pouco sobre a trajetória de um olhar cartográfico para o cotidiano na coordenação pedagógica do Programa CCBB Educativo – Arte & Educação em Brasília.
Em sua fala, a coordenadora selecionou alguns exemplos de ações desenvolvidas pela equipe, visando ilustrar de que modo uma investigação pode originar uma série de processos, ações e produtos coletivos dentro de um programa educativo. Tatiana reforça ainda que, no “fazer junto” a mediação cultural, teoria e prática se retroalimentam em um método que “investiga, cria, realiza, reflete, recria e recomeça de novo”.
O percurso partilhado pela convidada diz respeito, por exemplo, à investigação desenvolvida por educadoras e educadores no campo do patrimônio. Ao longo de sua apresentação, pudemos acompanhar de que modo um mapeamento realizado em torno de um mesmo objeto de pesquisa – o patrimônio – pode alimentar a elaboração de uma série de ações e materiais educativos, por sua vez reunidos no site http://patrimonioememoria.ccbbeducativo.com/.
Articular saberes: como propor debates para a consolidação de ações?
Ainda no campo das ações patrimoniais, o museólogo-educador Cauê Donato aponta, a partir da experiência de educadoras e educadores do Programa CCBB Educativo – Arte & Educação em São Paulo, alguns caminhos possíveis para a consolidação de espaços de formação e construção de práticas híbridas de educação.
Ao destacar especialmente alguns percursos trilhados na elaboração da atividade Lugares de Criação Patrimonial, o coordenador ressalta a importância dos processos formativos na articulação entre os múltiplos saberes vindos de uma equipe transdisciplinar. Além disso, o convidado associa o papel da coordenação pedagógica à ativação de espaços coletivos de partilha e criação que viabilizem o trânsito entre teoria e prática.
Estar entre muitos: como produzir sentidos mediando sentidos?
Em sua dissertação de mestrado, “E se experimentássemos mais? Um manual não técnico de acessibilidade em espaços culturais”, a educadora e pesquisadora Camila Alves compartilha algumas reflexões sobre a mediação cultural em museus: “Estar entre muitos nos coloca na posição de quem também há de viver uma experiência, experiência essa que pode se dar no contato com a arte ou ainda com o público que nos visita. O ato de contar histórias também é capaz de desestabilizar um dispositivo, desestabilizar um mediador, fazendo-o se reinventar e desse modo reinventar também o espaço do museu”.
Desdobrando as palavras de Camila, o artista-educador Milton Lira, que atua na equipe de Belo Horizonte, defende que a mediação é um exercício de praticar convívios. O convidado reforça que é no estar entre muitos – e no ser entre muitos – que acessamos a pluralidade real do mundo e encontramos caminhos para nos conhecermos e reconhecermos como público, construindo, a partir de então, uma postura anti-capacitista e inclusiva.
“Nada sobre nós sem nós”, afirma o educador, fazendo referência a uma conhecida máxima do Movimento pelos Direitos da Pessoa com Deficiência. A esse respeito, Milton ressalta que o lugar da coordenação pedagógica também envolve acolher, ouvir e “fazer junto” com as pessoas com deficiência que estão pesquisando e praticando a acessibilidade cultural. É a partir dessa atitude, em sua visão, que a coordenação amplifica e reverbera esses pensamentos com os públicos e entre as suas equipes, estruturando a prática e o cotidiano educativo a partir dessa noção. O coordenador nesse sentido, atua como aquele que media sujeitos e saberes, colocando-os em convívio.
A clínica do cotidiano: o que está invisível na mediação cultural de uma exposição?
Observar acontecimentos, solucionar problemas e construir meios para se fazer junto: é na relação entre as diferentes etapas de um olhar bastante atento aos processos cotidianos da mediação cultural que a artista-educadora Pompea Tavares localiza possíveis respostas para a pergunta: “Onde está a coordenação pedagógica?”.
Adotando como recurso uma espécie de paródia à medicina, a coordenadora do Programa CCBB Educativo – Arte & Educação no Rio de Janeiro nos apresenta a “Clínica da Mediação”: um espaço onde se realiza a anamnese, o diagnóstico e o tratamento de situações-problema mapeadas no dia-a-dia da equipe. É a partir dessa atividade essencialmente clínica, segundo ela, que se pode cultivar um ambiente saudável de mediação tanto para os públicos quanto para as equipes.
“Casa de ferreiro, espeto de pau”
Muséologo-educador, filósofo-educador, artistas-educadores: muitos são os prefixos que precedem a palavra-lugar educador e que marcam os múltiplos trajetos formativos que cada sujeito educador presente no encontro percorreu até chegar ao corpo coletivo da coordenação pedagógica, em meio a uma equipe multi, inter e trans-disciplinar.
Trocando metáforas, o campo da mediação cultural é um oceano no qual desembocam muitos rios, e cada rio carrega seus próprios olhares, referências e saberes. No oceano da mediação cultural, essas experiências diversas se encontram e são rearticuladas, em um constante fazer e se refazer juntos.
Nesse campo de encontros, contudo, são também muitos os desencontros. Por exemplo: as equipes educativas contam, em geral, com um alto nível de rotatividade. Entre chegadas e partidas de estagiários, educadores e coordenadores, assim como durante as sucessivas montagens e desmontagens de exposições, pouco do universo de trocas e vivências diárias é capaz de atravessar o tempo como um legado sistematizado.
Um dos paradoxos mais curiosos do cotidiano em instituições de memória e cultura, aliás, é a ausência de produção de memória institucional sobre si. É nesse sentido que se justificam iniciativas como o Arquivo Vivo – um amplo acervo gratuito de relatos sobre as atividades do programa – e também a realização de encontros como este: momentos em que procuramos materializar, sistematizar e partilhar um pouco do todo que fazemos juntos – um todo que atravessa e é atravessado por verbos como criar, registrar, pesquisar, refletir, organizar e comunicar.