Publicado na edição de nº 1018 do jornal Nossa Voz, da Casa do Povo (SP), “O nascimento de Urana”, de Jota Mombaça, não é um texto qualquer. Descrita como um exercício de ficção especulativa, a obra parte de uma realidade imaginada com o objetivo de “contribuir para a composição de estratégias coletivas de resistência, luta e contraposição aos modos nefastos de atualização da violência distópica contra corporalidades trans e desobedientes de gênero”, escreve. Trata-se, portanto, de um manifesto/ocupação, bem como um convite para pensar outras formas de existência e coletividades possíveis.
Para a curadora e pesquisadora Beatriz Lemos, o texto é um exercício visionário e político de imaginação de realidades relativas às questões de gênero, ainda que não considere suspensas as “imposições do fundamentalismo cisgênero”. No curso Transversalidades, realizado em agosto de 2019, no CCBB SP, ela promoveu uma oficina de leitura com professores e educadores para discutir o texto de Jota Mombaça e as possíveis interpretações suscitadas.
Com os participantes dispostos em roda, a discussão partiu da apresentação de cada um, levando em conta os seus lugares de fala e a maneira como se localizam politicamente na sociedade contemporânea. “Quando nos localizamos no mundo, outra perspectiva se abre e essa ‘identidade-identificada’ está presente em tudo o que se faz, nos meus discursos e vocabulários. Não é possível compreender a maneira como enxergo o mundo sem antes esclarecer esses atravessamentos.”
É a essa localização no mundo que Beatriz Lemos atribui a importância de “O nascimento de Urana”, escrito por uma pessoa não binária, ensaísta, performer e auto-proclamada bruxa política. “É um texto feito a partir da dissidência desse corpo. Jota Mombaça é uma figura que fricciona os ambientes e as normatividades. É importante pontuar: é a partir deste lugar que ela está falando”, comenta.
Ao longo da leitura do texto, feita em conjunto, os participantes do Transversalidades chamaram a atenção para a maneira como Jota vislumbra a existência trans em um futuro distópico, apocalíptico e hiper-regulamentado. “A ascensão do Cistema, no terreno da política institucional, abriu caminho para a aprovação de leis nefastas, como a da Destransição Compulsória para pessoas trans sem diagnóstico e a da Renaturalização, que impunha às pessoas diagnosticadas como ‘transexuais verdadeiras’” a implantação de microchips reguladores de comportamento, além de procedimentos violentos como esterilização involuntária e instalação de marcas hormonais por meio das quais as biopolícias podiam conferir se as taxas de hormônios de um determinado corpo estavam em acordo com as declarações médicas e jurídicas registradas para aquele mesmo corpo”, descreve, em uma das passagens do texto.
“Ela fala de um futuro não tão distante, em que há uma ideia hegemônica de cistema, ligado à questão do cisgênero”, comenta Beatriz Lemos. “Nesse contexto, essas normas, que são compostas por coletividades e bases políticas, foram expulsas da terra e criaram plataformas no mar. E, nisso, as pessoas trans têm acesso a doses de hormônios que as transformam em elementos da natureza. Isso mostra o quanto esse texto é um exercício de ficção com a intenção de extrapolar a questão de gênero. Já está num nível de reflexão que considera os corpos trans como não-humanos, que acabam por se tornar corpos-flor, extrapolando a ideia binária de mundo a que estamos submetidos.”
Autoficção biográfica futurística
Beatriz Lemos ainda destaca a relação da ficção especulativa produzida por Jota Mombaça com uma noção de autoficção biográfica, já que está situada em um contexto de futuro. “Ela descreve muito bem esse ambiente, esses seres a partir de si, como essas pessoas vivem nesse mundo distópico. E ainda detalha como esse mundo atua: por meio de bombas, sirenes, corpos com sensores táteis. E, por fim, ela, como personagem, vai se fundindo à terra”, explica.
“Com todos os sentidos permeados pela terra, mas sem ainda ser capaz de perceber onde estava, tentava com todas as forças captar sinais, frequências e informações sobre aquela explosão em pleno mar. Em pleno mar!!!”, escreve Jota, imaginando a instalação futura de grandes sociedades humanas em alto mar. “Lá, onde as bases do Cistema foram abrigar-se das investidas da terra. O custo da suposta estabilidade dessas bases tinha sido precisamente a esterilização radical da vida marinha. O fundamentalismo cisgênero lia como ameaça toda forma de vida que não se resumisse ao seu projeto de mundo”.
Diante disso, Jota Mombaça escreve sobre um processo de paralisia atrelado à interrupção da existência de um corpo dissidente na sociedade imaginada. Trata-se, segundo Beatriz Lemos, de uma reação à violência dos olhares, da rejeição e do desafeto. “Ainda mais em uma situação em que a nossa existência não é tolerada ao outro. Sanar a paralisia, portanto, é ir sentindo o corpo, ir deixando o espaço de opressão, percebendo cada elemento do corpo de novo, como uma nova primeira vez”, sugere, retomando imagens de “O Nascimento de Urana”.