Um olhar sobre o humano…
Existem muitos caminhos e formas para trabalhar com pessoas e comunidades. Algumas experiências florescem e frutificam. Outras estancam diante dos desafios.
O que é interessante observar é que nos projetos que prosperam existem sempre pessoas que realmente se identificam com a proposta, que acreditam no sonho e que se põem em movimento.
Eu só me envolvo em propostas nas quais acredito. É da minha natureza acreditar no ser humano e na sua possibilidade de transformação.
A experiência de muitos anos trabalhando com pessoas e grupos de comunidades rurais e urbanas me fez desenvolver um olhar sensível para perceber possibilidades encobertas, talentos adormecidos e sementes por germinar. Geralmente, quando chegamos a uma comunidade, conhecemos primeiramente lideranças e destaques. Quando as lideranças são positivas e inclusivas, o caminho natural é que as outras pessoas se manifestem com liberdade. No entanto, são tantas as mazelas do poder que, mesmo em localidades muito pequenas, é comum que as pessoas não se sintam com liberdade e confiança para se manifestar. A luta pela sobrevivência, a desigualdade nas oportunidades, os valores humanos distorcidos por uma sociedade materialista e a violência gerada por tudo isso vão minando gradualmente a potência do ser humano. E é justamente essa potência que me interessa!
Acredito que toda pessoa tem um propósito divino na sua passagem por essa vida.
Acredito que o ser humano tem uma força cristalina dentro de si (uma chama, uma luz). Em algumas pessoas, a chama fica encoberta por muitas camadas de escuridão. Em outras, se acende e se apaga. E existem aquelas pessoas que carregam com mais força essa chama acesa. O grande desafio é acessar a força encoberta.
Quando começo um trabalho com grupos e pessoas, meu primeiro passo é olhar, perceber e escutar o ser humano diante de mim em suas questões pessoais e coletivas. Eu tento descobrir o que impede que a força de cada um venha à frente e o que posso fazer para provocar movimentos. Na maioria das vezes, a porta de entrada é a memória da infância: lembranças de alegrias que revelam a conexão com a natureza de seu lugar e com a cultura do ser humano que habita aquele território.
O passo seguinte é um encontro para brincar. Então, juntos, trazemos o movimento, a expressão que se conecta com leveza ao indivíduo e ao coletivo. Brincar é uma ação, mas é também o lugar da presença, da expressão do corpo inteiro, da liberdade! Ativar esse lugar é também abrir um espaço dentro de cada um para deixar emergir a alegria. Encontrar a alegria é se conectar com a chama da vida que mora dentro das pessoas. A partir daí, começamos a construir um ciclo de descobertas e de encontros.
Às vezes é uma música, uma história, uma boneca de pano… Outras vezes, é um verso cantado, uma cantiguinha de ninar. Pode ser um caminhão de pau, um pião, um fuso de fiar algodão. Qualquer lembrança cristalina de um tempo de alegria pode ser o fio que nos levará ao caminho que vai se transformar num projeto de vida, de convivência ou mesmo de geração de renda.
Foi assim quando cheguei ao Vale do Jequitinhonha (MG), há mais de vinte anos. A saudade manifestada por moradores de comunidades rurais de suas rodas e seus batuques de outrora nos motivou na criação de espaços de convivência para que os adultos pudessem brincar entre si e com as gerações posteriores. A alegria foi contagiante e os espaços de multiplicaram. Cantigas de roda, roda de versos, batuques, caboclos, dança do nove e outras manifestações musicais das comunidades rurais do Jequitinhonha voltaram a ser praticadas com força e foram, gradualmente, ganhando consciência de sua importância. Crianças e jovens foram naturalmente se integrando à sua cultura ancestral e o que era brasa dormida passou a ser uma chama viva.
Fomos aprendo com a gente do sertão que quem brinca também canta, dança, toca, cultiva a terra, colhe, cozinha, recebe as crianças no mundo, reza e cura. São muitos saberes preciosos ligados à Terra Mãe e ao seres que habitam aquele território – saberes que geram saúde e merecem ser confirmados e partilhados.
Em conversas com as mulheres das comunidades, percebemos que era necessária a realização de encontros de mestres e mestras conhecedores de plantas, de parteiras, de benzedeiras e benzedores, de tocadoras e tocadores, de grupos de roda e de batuque para que a troca de saberes fortalecesse cada um em seu lugar. Fomos atrás de parceiros e realizamos diversos encontros locais e regionais. Cada encontro alimenta a realização de outros mais. Novas questões e possibilidades surgem e a rede tende a se ampliar para outras regiões.
Assim como as pessoas, cada comunidade tem uma particularidade, algo que é só seu. Convivendo com o olhar atento e escutando o que as pessoas trazem, naturalmente surgem os projetos, que são adequados para aquela gente e aquele lugar.
Se, em uma comunidade, as pessoas trazem histórias e dominam o ciclo do algodão, sentem saudade do que faziam e têm vontade de refazer, o tear se apresenta como um caminho. Então, desenvolvemos junto com elas um projeto maior, que envolve a formação ou a revitalização de um grupo, a recuperação dos teares, a reforma do espaço de trabalho, a compra do algodão, a consultoria técnica, a criação de uma coleção e a comercialização das peças produzidas. Esse é um exemplo do que aconteceu na comunidade de Tocoiós. Durante a implantação do projeto, novas questões foram surgindo e foi preciso dar atenção a elas. No caso do algodão, o problema era a falta de produção na região. O algodão vinha de longe, mas todos contavam histórias de seus pés de algodão do passado. Procuramos saber o que ocasionou o declínio da produção e quais eram as possibilidades de um replantio. Buscamos relatos de experiências bem-sucedidas em outras regiões. Fomos atrás de parcerias e reiniciamos uma experiência de plantio de algodão agroecológico nas comunidades das tecelãs e fiandeiras. Com uma consultoria técnica e a participação dos agricultores familiares da região, os experimentos e as colheitas já estão acontecendo. Agora já é quase possível realizar, na própria comunidade, toda a cadeia produtiva do algodão: do plantio ao tear. É possível conhecer essa história, com detalhes e em imagens, no site www.tingui.org (Tecelãs de Tocoiós) e no Instagram: @mulheresdojequitinhonha
Se, em outra comunidade, as conversas de saudade apontam para um bordado tradicional, a gente procura saber como era originalmente esse trabalho. Quem ainda o faz? Existem pessoas interessadas em número suficiente para formar um grupo? Qual vai ser a identidade do grupo? Na comunidade do Curtume, a identidade veio através dos desenhos do filho de uma bordadeira. O traço característico desses desenhos foi preenchido de uma maneira diferente da de outro lugar qualquer. O grupo amadureceu, se ampliou e passou a ser um grupo produtivo, que gera uma renda justa para as bordadeiras.
As conversas também apontaram para o tingimento natural, com cascas de árvores da região. Então, foi preciso ir atrás de quem conhecia as plantas e o processo. Trocar experiências com tingideiras de outras comunidades. E, assim, deixar os tecidos para bordar mais lindos e com mais identidade.
Mas as bordadeiras também cantam, dançam e jogam versos. Então, era importante revitalizar o grupo de rodas e de batuques do Curtume.
É possível conhecer essa história, em detalhes e imagens, no site www.tingui.org (Bordadeiras do Curtume) e no Instagram: @mulheresdojequitinhonha
Existem comunidades que só querem cantar e dançar. A gente, então, entra na roda! E as convida para participar de encontros para brincar com outros grupos.
Acredito muito no intercâmbio entre pessoas e comunidades. Os momentos para brincar, cantar, fazer e conversar proporcionam e potencializam uma troca horizontal e espontânea de saberes e de experiências. Os encontros criam um ambiente fértil para a troca e o aprendizado, potencializam a cultura viva e acendem a “chama do novo”!
E como ficou essa gente alegre durante o recolhimento da pandemia de Covid-19? Os encontros para brincar e cantar foram interrompidos, mas as cantigas continuavam nas casas e nos roçados. Como nossa comunicação passou a ser feita por aparelhos de celular, muito naturalmente veio a ideia de gravar e enviar cantigas e versos para as companheiras de lugares distantes. Nasceu, assim, o projeto Roda de Versos, que proporcionou uma troca de alegria entre as mulheres das comunidades parceiras. Como fazer versos é uma tradição regional e proporciona alegria a quem os recebe, o Roda de Versos se desdobrou no projeto Versinhos do Bem Querer, que espalhou mais de 10 mil versinhos por todo o mundo! Pessoas entravam no site, pediam um verso e passavam características de quem iria recebê-lo. Pagavam uma taxa e as mulheres faziam versinhos personalizados e cantados com refrãos tradicionais. Os versinhos levaram alegria e trouxeram renda num momento muito delicado de nossa história.
É possível conhecer essa história, em detalhes e imagens, no Instagram: @mulheresdojequitinhonha – Rodas de versos e, ainda, encomendar versinhos no site: www.versinhos.com.br.
Infelizmente, nem tudo é alegria. Conversando com as mulheres fui conhecendo também suas dores. Mesmo na calma aparente das comunidades rurais, são muito comuns os casos de abusos e de violências. São marcas que não se curam somente com plantas e rezas. Por isso, foi necessário buscar outras ajudas. O caminho encontrado foi a criação de uma rede voluntária de terapeutas holísticos, médicos, fisioterapeutas, homeopatas, psicólogos, psiquiatras e acupunturistas em uma cidade maior da região e que incluiu uma parceria com o Departamento de Odontologia da Universidade Federal dos Vales do Jequitinhonha e Mucuri – UFVJM. Como o local do atendimento fica a quatro horas de distância das comunidades, foi necessário estabelecer parcerias com o poder público para o transporte dos pacientes. Esse projeto nasceu de uma conversa íntima com as mulheres e foi sendo adotado por cada profissional voluntário que participa dessa rede. Esse projeto recebeu o nome delicado de Brota Flor!
É possível conhecer essa história, em detalhes e imagens, no site da Associação Tingui – www.tingui.org.
Os jovens e os homens também têm muito o que dizer. Identificamos uma tristeza em alguns jovens que têm que deixar a sua terra para buscar o sustento em outro lugar. Por isso, estamos inaugurando, numa parceria com a Associação Tingui, novos projetos que acolham devagarinho os sonhos dos jovens e dos homens das nossas comunidades parceiras.
Assim, vou seguindo meu caminho: olhando, escutando, tentando perceber os sinais de luz e imaginando possibilidades. Vou partilhando sonhos e projetos.
Procurei trazer aqui, de maneira bem simplificada, o fio que conduz os trabalhos que realizo em comunidades do Jequitinhonha e em outros locais do Brasil. O que faço é somente uma possibilidade entre as infinitas que existem no universo.