Existem inúmeras maneiras de interpretar a obra de um artista. Há quem se atente às características estéticas e formais, e outros que buscam os significados na biografia dos artistas. Estas são formas de olhar que convergem para uma compreensão ampliada de cada trabalho. Partindo do pressuposto de que uma obra ganha uma nova existência quando se atribui significados a ela, contextualizá-la num espaço-tempo convém ao processo de interpretação, na medida em que contribui para amplificar sua função e trazê-la para perto do público.
Esse é o movimento que Dawisson Belém Lopes propõe ao Transversalidades, por meio do curso O Awesso do Awesso, realizado no CCBB BH em março de 2019. Partindo da exposição “Raiz – Ai Weiwei”, o professor de Relações Internacionais e doutor em Ciência Política revisita o cenário de mudanças e permanências em que as obras foram criadas: a China pós-revolucionária, de Mao Zedong a Xi Jinping.
Nos últimos 70 anos, o maior país oriental teve de se reinventar para continuar no centro das relações internacionais, lugar que sempre ocupou. Segundo o professor, esse processo não foi simples, tampouco livre de contradições e violências, tanto simbólicas como físicas. “A China tem uma trajetória gloriosa impressionante como estado hegemônico extremamente rico. Até o século XV, a renda per capita de um chinês ultrapassava a de qualquer europeu”, pontua.
Com a decadência que se manteve até o século XX, as ânimos internos do país entram em ebulição e, em 1949, os comunistas chegam ao poder por meio de táticas de guerrilha. Em meio a isso, conforme conta Belém Lopes, é possível localizar a atuação de Ai Qing, pai de Weiwei,considerado um dos maiores poetas chineses de sua geração. “Depois de participar da luta revolucionária no núcleo duro, Qing se indispõe com o Estado e é forçado a se exilar no campo. Com o esforço do governo para reescrever as tradições, o poeta também é obrigado a queimar sua biblioteca, composta em sua maioria por obras de arte”.
Em busca de liberdade
Esses e outros motivos foram determinantes para a própria constituição da obra de Ai Weiwei, ainda que ele tenha vivenciado a China dos anos 1980 que, com a abertura para o mundo, experimenta a estabilidade política por meio de uma via de atuação pragmática e menos ideologizada. No final da década, quando o Partido Comunista Chinês (PCC) vivia sob o espectro do fim da URSS, parte da população começa a reivindicar liberdades civis e, como reação, o governo chinês endurece suas políticas de Estado. Em meio a este cenário, Ai Weiwei se muda para os Estados Unidos, mantendo, desse modo, suas liberdades de expressão e mobilidade, algo que ele “certamente não teria se vivesse na Pequim dos anos 1990”, analisa Dawisson Belém Lopes.
Apesar de ter regressado ao país natal para desenvolver trabalhos importantes, como o Estádio Nacional de Pequim, conhecido como Ninho de Pássaro, para as Olimpíadas de 2008, Weiwei se torna persona non grata na China a partir do momento em que passa a se engajar no ativismo, denunciando, em um primeiro momento, a má qualidade das construções públicas chinesas. Ainda em 2006, ele se entrincheirou na internet para denunciar as injustiças e irregularidades do país. Mesmo que o governo tenha encerrado seu blog em 2009, ele continuou divulgando ideias, vídeos e selfies diariamente a milhões de seguidores. Em 2011, foi preso no Aeroporto de Pequim sob a acusação de falsa evasão fiscal. Passou 81 dias desaparecido e, embora tenha sido solto no ano seguinte, permaneceu em prisão domiciliar em seu estúdio até 2015.
Para entender Ai Weiwei
Para Dawisson Belém Lopes, existem algumas grandes temáticas que aparecem na obra de Ai Weiwei e se relacionam diretamente com sua identidade de artista e ativista nascido na China. A primeira delas é a defesa de liberdades civis. “A liberdade de expressão, por exemplo, é um tema que lhe é muito caro. Ele faz disso uma questão vital, colocando inclusive a sua própria vida em risco”, analisa, fazendo referência à atuação do artista no Twitter. O professor conta que, na China, as redes sociais comuns são proibidas e, portanto, existe uma “polícia da internet”. “Ai Weiwei sofre diretamente as consequências disso. Como não há acesso às redes normais, os chineses dispõem de uma rede social que congrega várias funções, e é monitorada pelo governo”, pontua.
As migrações internacionais são o segundo grande tema apontado pelo professor. “Ai Weiwei vai além, traz a temática para a sua obra de forma frontal”, diz, em referência à instalação “Law of The Journey (Prototype B)”, que representa um bote de refugiados. “Para além das migrações internacionais, também podemos relacionar a maneira como a China lida com esse tema internamente. Para se mover dentro do país, é preciso ter passaporte e permissão. Existe uma política de controle muito ativa”, conta.
Geração “Made in China”
O desenvolvimento científico, tecnológico e urbano é outro tema que atravessa a obra de Ai Weiwei e está em diálogo com um projeto do governo chinês de disseminar uma ideia de “Chinese Way of Life”, tal qual o ideário dos estadunidenses reforçado durante a Guerra Fria. Segundo o professor, o objetivo seria rejuvenescer a imagem da China por meio de investimentos na educação acadêmica e na divulgação da cultura tradicional em outros países, principalmente no Ocidente. Dessa forma, seria possível contra-argumentar indivíduos como Weiwei e promover uma ideia de China moderna e acolhedora.
Por fim, Dawisson Belém Lopes associa uma severa crítica ao modo como a China tem buscado a retomada de sua ascensão: adaptando seu sistema econômico ao capitalismo financeiro. Como resposta a esse contexto, o artista passa a problematizar, em suas criações, aspectos como a industrialização exacerbada e a produção em massa. “A China sucumbiu ao canto da sereia capitalista. Por lá, conceitos como individualismo e a produção seriada são regras de mercado, além da urbanização intensa, acelerada e brutal”, analisa.