Na edição de junho de 2021 do Múltiplo Ancestral, somos convidados a imergir no universo de uma das sobreviventes etnias indígenas brasileiras, o povo Xavante. Conduzidos por Divino Tserewahú, temos contato com um dos ritos de aprendizagem da vida espiritual dessa cultura ancestral. Integrante do povo Xavante, Divino é um cineasta que utiliza imagens e narrativas presentes na vida aldeada como um espaço de registro e visibilidade cultural do seu povo. O cineasta utiliza principalmente imagens coletadas dentro da sua aldeia, localizada na terra indígena Sangradouro, no Mato Grosso. O vídeo apresentado foi produzido a partir de registros do ritual de passagem para a vida adulta tradicionalmente experimentado pelos meninos Xavante.
Historicamente, o povo Xavante ganhou muita visibilidade na mídia brasileira a partir do final de 1940, com uma campanha do Estado Novo que divulgava a “Marcha para o Oeste”. A partir dessa ação, o Serviço de Proteção aos Índios (SPI) ganhou o foco da mídia devido ao seu trabalho de “pacificação dos Xavante”. A esse respeito, contudo, é importante ressaltar que essa “pacificação” se referia a apenas um dos muitos grupos Xavante que habitavam o leste do Mato Grosso, reduzindo, de modo colateral, o entendimento cultural sobre essa vasta etnia e seus grupos. Entretanto, tendo como objetivo real a abertura e a expansão capitalista no Mato Grosso, a mesma campanha, sob os olhos do povo Xavante, está associada à pacificação dos povos “não indígenas” envolvidos naquele episódio.
Mesmo sofrendo, como várias outras etnias indígenas brasileiras, um intenso processo de dominação territorial e cultural, o povo Xavante preserva vivos, ainda hoje, grande parte de suas manifestações ancestrais, sociais, cosmológicos e cerimoniais – tudo isso a partir de muita luta e um intenso trabalho de geração em geração.
Ao observarmos os dados e notícias mais recentes sobre a população Xavante, por exemplo, é perceptível o seu crescimento ao longo dos últimos 10 anos. Além disso, cada vez mais a cultura xavante, assim como outras tradições indígenas, estão se autoafirmando em sua representatividade, fazendo-se presentes em diferentes campos da sociedade brasileira. Diferentemente de outros tempos, muitas narrativas e registros encontrados no hoje têm sido feitos pelos próprios integrantes dessas comunidades – em um caminho de desvio em relação a um longo período caracterizado por olhares e representações vindas de corpos “não indígenas”.
Reconexão com o ontem e amanhã
A etnia Xavante é bastante conhecida por estudiosos da antropologia pela sua organização social dualista: a sociedade se organiza através da divisão em duas partes distintas, como espécies de clãs que diferenciam-se por algum tipo de simbolismo, esses grupos são metades opostas, que se contrapõem ao mesmo tempo que são complementam, no caso dos Xavante a divisão se dá entre: Poredza’ono e Ö wawẽ + Tobrató (aqui, dois clãs distintos formando um único clã mais abrangente). Em meio a uma tradição que se desdobra de geração em geração, a partir de relatos, rituais, ensinamentos e também da escrita, a educação sobre as crenças começa muito cedo, para que desde então as crianças saibam quem são e se lembrem de tudo aquilo o que não pode ser esquecido.
Desde de muito jovens, por exemplo, os meninos são separados em grupos por faixas etárias próximas e começam a passar por provas e rituais de iniciação à educação espiritual. Como podemos assistir no vídeo, o processo de educação é de grande importância e se caracteriza pela participação coletiva.
A obra de Divino Tserewahú enfoca o ritual que demarca o fim da vida adolescente e início da etapa adulta, servindo como desdobramento de algumas outras cerimônias que acontecem previamente. Entre as experiências vividas pelos meninos Xavante, há desde lutas com clavas, como demonstração de coragem ante o medo e as próprias fraquezas, até um período de cinco anos de reclusão, quando os jovens são privados de contato com o resto da comunidade, saindo do isolamento apenas para rituais e outras atividades como caça e pesca.
Ao longo da obra, é possível perceber os momentos que sucedem a saída definitiva da reclusão, os primeiros lampejos das viagens desses meninos aos mundos dos sonhos e também o instante em que recebem uma flecha branca, simbolizando o espírito que dá força ao homem. Também nesse rito, a orelha dos jovens é furada, e no local é inserido um objeto sagrado que, segundo a cultura Xavante, ajuda na indução dos sonhos.
Após os contatos com a cultura “não indígena”, entretanto, alguns jovens Xavante começaram a identificar esses objetos como “antenas” que os fazem captar, por meio dos sonhos, os pensamentos dos ancestrais de sua etnia. O rito é de tal significância que Divino demarca a sua importância com a seguinte frase: “Sem isso ninguém vive e nem ninguém morre”.
Sonhos, espaços de autoconhecimento
O vídeo compartilhado nesta edição do Múltiplo Ancestral é um ótimo exemplo do caminho de auto representação atualmente vivido por diversas etnias indígenas. Não por acaso, nesse mesmo período em que o vídeo é lançado, a obra de um artista indígena está sendo apresentada na mostra “1981-2021 : Arte contemporânea brasileira na coleção Andrea e José Olympio Pereira” – e há menos de dois anos pudemos testemunhar a outros trinta artistas indígenas participando da mostra “Vaivém”, também exibida pelo Centro Cultural Banco do Brasil.
Na exposição “1981-2021”, o artista Jaider Esbell traz a pintura “De onde surgem os sonhos”, produzida em 2021, como uma representação do mundo dos sonhos e da cosmologia da sua etnia Macuxi, situada em Roraima. Seja por acaso ou não, essas duas culturas trazidas pelo vídeo e pela pintura evocam a importância do sonho como um espaço de vivências, trocas e aprendizados. Mesmo geograficamente distantes, os Xavante e os Macuxi parecem apresentar pontos similares em seus entendimentos do mundo – seja que se refere ao mundo natural ou onírico.
Divino Tserewahú nos conta que, para os povos Xavante, sonhar é ver e ter contato com as coisas de outros tempos. Para eles, o sonho é um caminho de educação espiritual que permite ao corpo ter ligações com seu próprio poder e com sua força ancestral adormecida, reconectando-se com os animais e com o sobrenatural. Entre os Xavante, adentrar nesse universo é imprescindível para que se cresça e se evolua, e por isso o ritual presente no vídeo serve como prova da transição de cada um desses jovens, cujas idades variam entre 10 e 15 anos, para a aguardada vida adulta.
Em uma possível analogia, o mundo onírico seria uma escola sobre as crenças desse povo, trazendo conhecimentos que permitem ao homem ver e sonhar com a sua própria realidade. Nessa escola, distintos pontos de vista se fundem, e é permitido ver para além do ontem e do hoje. Estar educado, nessa perspectiva, possibilitaria aos jovens perceber novos detalhes da grande estrutura que nos cerca – algo que também pode ser percebido quando olhamos a obra de Jaider Esbell por um tempo mais longo.
Direito ao sonho, à memória e à lembrança
Ao assistir ao vídeo de Divino Tserewahú, veio a mim a curiosidade de saber mais sobre as culturas ancestrais dos s povos originários que formaram e ainda formam o nosso país – mesmo sendo massacrados e muitas vezes extinguidos pelo espírito colonizador que habita a sociedade em que vivemos. Veio a mim o desejo de saber mais sobre as minhas origens e de relembrar o que não deveria ter sido esquecido.
Ao pesquisar mais sobre etnias indígenas nas redes, e em especial sobre a etnia Xavante, percebi como nossa sociedade está longe de entender e de respeitar aquilo que é diferente dos modelos sociais trazidos pelos colonizadores – fator que pode ser percebido tanto nas lutas constantes dos povos indígenas pela vida e por suas terras, assim como na recorrente apropriação de suas manifestações artísticas e culturais.
Por essas e outras, o trabalho apresentado nesta edição do Múltiplo Ancestral demarca sua importância ao afirmar-se como um processo de auto representação, auto conhecimento e salvaguarda de uma das nossas muitas culturas ancestrais. Trata-se, nesse sentido, de uma ação ímpar e necessária para o fim da romantização dos corpos indígenas, seja como corpos exóticos ou como fantasias de Carnaval. Uma ação significativa para que, em vez disso, tais corpos sejam vistos como semelhantes aos nossos, no que se refere ao direito à vida, à cultura, à memória e ao sonhar.