Segundo os parâmetros do dito Ocidente, os produtos da cultura indígena são tratados como pertencentes à história natural da humanidade. Isso significa que o conhecimento e as tradições desses povos são considerados à margem das ciências hegemônicas, principalmente as que compreendem o mundo a partir de documentos escritos e monumentos materiais.
Partindo, no entanto, da ideia de “Direito à Cidade“ – em paralelo ao Direito à Vida, garantia prevista na Constituição Brasileira de 1988 –, trataria-se de uma prerrogativa exclusiva às populações urbanas? Ou será possível advogar para que um solo, antes território de uma aldeia indígena, seja considerado patrimônio arquitetônico? Paulo Tavares, professor da Universidade de Brasília (UnB), respondeu a esta pergunta durante o Laboratório de Crítica “Em Defesa dos Direitos_arquitetura como advocacia”, no qual apresentou o projeto Memória da Terra e a revista Des-Habitat.
Segundo Tavares, a ideia nasceu a partir da verificação do deslocamento forçado de indígenas como uma prática que sempre esteve presente na história do contato com estes grupos e da ocupação do território brasileiro. Durante a Ditadura Civil-Militar (1964-1985), esse processo se expande e causa uma série de problemas para a natureza. “O que era fruto de uma concepção de origem arquitetônica e territorial torna-se um projeto político. A destruição ambiental, nesse caso, é produto do design”, aponta.
Os desaparecidos dos desaparecidos
Os militares concebiam os territórios indígenas como um vazio demográfico. Para sanar esse problema, foi criada a Política da Pacificação, com o objetivo de concentrar esses povos no mesmo território e transformar seus membros em trabalhadores rurais. O relatório da Comissão Nacional da Verdade (CNV) estima que ao menos 8 mil indígenas foram forçosamente desaparecidos ou mortos pelo Regime Militar. Apesar disso, “os indígenas estão virtualmente ausentes do imaginário simbólico e dos registros históricos do período. Eles são os desaparecidos dos desaparecidos, ou seja, desapareceram da própria situação de vítimas políticas do Estado”.
Paulo Tavares entende isso como uma “ausência-presente” na própria iconografia clássica da América Latina, onde as imagens de pessoas desaparecidas geralmente aparecem na forma de registros documentais, imagens de RG, comprovantes hospitalares, isto é, documentos que atestam a existência desses indivíduos perante o Estado brasileiro. “No caso dos indígenas, esse tipo de evidência é praticamente inexistente, na medida em que eles não eram parte efetiva do Estado, justamente porque os mecanismos biopolíticos de controle – mapeamentos e censos, por exemplo – não chegavam em seus territórios”, explica.
O projeto Memória da Terra, desenvolvido pelo pesquisador, carrega a ideia de utilizar elementos oferecidos pelo estudo da arquitetura para advogar em causas na Justiça. Tendo como base a história dos Xavantes durante o período militar, a pesquisa reconheceu imagens desses povos, em geral advindas do fotojornalismo, que não seriam um simples registro de um acontecimento, mas “evidências de um crime de Estado”. A partir dessas imagens, foi possível remodelar e reconstituir as aldeias e assentamentos abandonados ou destruídos pelo Estado. Segundo Paulo Tavares, todas elas possuíam um urbanismo muito específico: sempre organizadas em meia lua, as ocas eram voltadas para um riacho, em torno de uma praça central. Dessa forma, reconhecer as aldeias indígenas como cidades seria um primeiro passo para resguardar os direitos básicos à vida, seu território e memória.
“Quando comparadas às imagens atuais, é possível identificar que houve um desmatamento ao redor de onde ficavam as aldeias. Apesar disso, há o padrão de uma vegetação no mesmo formato da aldeia, provando a fertilidade da terra onde os Xavantes moravam”, conta.
Arqueologia da paisagem
Na companhia de Xavantes contemporâneos, o grupo de pesquisa esteve nos pontos geográficos identificados pelas imagens. Apesar das transformações que aconteceram na região, os anciões se mostraram capazes de identificar a localização das aldeias fundadas por seus ancestrais e, a partir de então, foram realizadas expedições para documentar e mapear os territórios. Segundo o pesquisador, o passado indígena do espaço que antes pertencia aos Xavantes está na memória coletiva desse povo e também na memória da terra. “A própria paisagem como arquivo, a terra como um documento histórico”, defende.
“As árvores, as lianas e as palmeiras que cresceram do solo fertilizado por esses antigos assentamentos são as paisagens históricas, os marcos históricos que testemunham a presença ancestral do povo Xavante. Essas formações botânicas são o próprio produto do desenho da arquitetura dessas aldeias. Elas são equivalentes à ruínas arquitetônicas, mas não são ruínas mortas, são vivas. Então, podemos entender árvores e plantas como monumentos históricos? Pode ser a floresta um patrimônio urbano, arquitetônico? Pode ela ser vista como cultura, e não natureza?”.
Considerando a resposta positiva para estas perguntas, o projeto se desdobrou em um relatório que, junto a outras provas colhidas pelo Ministério Público, servem como “material evidenciário” para uma petição feita ao Iphan e à Unesco para que o referido solo Xavante seja considerado patrimônio arquitetônico do Brasil e da humanidade.