Sem terra, não tem canto

Os Tikmũ’ũn, mais conhecidos como Maxakali, são habitantes milenares das florestas de Mata Atlântica que outrora cobriam toda a vasta região atualmente dividida entre o leste de Minas Gerais, o sul da Bahia e o norte do Espírito Santo. As histórias dos antigos, assim como o vasto repertório de cantos dos espíritos yãmĩyxop transmitidos há gerações entre eles, preservaram em seus corpos, palavras e memórias a diversidade dos seres visíveis e invisíveis que habitam ou já habitaram aquelas terras. Seres-animais, seres-plantas, seres-rios, seres-pedras e todos os seres encantados, yãy xamẽah, que os seus ancestrais conheceram foram preservados em seus cantos e histórias. Os cantos surgiram mesmo através desses seres, pois, se os seres não existissem, tampouco seus cantos e histórias existiriam. Nas palavras de Isael Maxakali, professor, liderança, artista e cineasta tikmũ’ũn: “Todos os bichos têm canto! Tem canto dos yãmĩyxop. As águas têm canto, a terra tem canto, as casas têm canto… Os aviões também têm cantos. São muitos cantos mesmo!”. Falas como essa sugerem que os cantos são tão diversos quanto a própria diversidade do mundo. Em outras palavras, a “cultura” (os cantos, as histórias, os rituais, as pinturas…) existe, porque o mundo ou a “natureza” (os bichos, as águas, as estrelas, as montanhas…) existem. A poética tikmũ’ũn é uma cosmopoética.  

O mundo, entretanto, como os Tikmũ’ũn o conheceram e seus cantos e histórias dão a ver, já não existe mais. Ao longo dos últimos séculos, esses “homens e mulheres” viram o seu mundo ser destruído pela ação dos seus invasores, a quem chamaram ãyuhuk xop, palavra que traduzem como “os brancos”. A floresta, este verdadeiro patrimônio cultural dos povos indígenas, foi explorada como “recurso” e seus habitantes, encarados como “obstáculo ao progresso”. Os brancos, afinal, não demoraram a entender que a exploração e a destruição da floresta eram também o meio mais eficaz para aniquilar os seus habitantes. Assim, em meados do século XIX, quando o avanço dos colonizadores sobre os “sertões do leste de Minas Gerais” se consolidou, o projeto de extermínio dos povos e da floresta era anunciado sem nenhum constrangimento pelo então governador da província: “[…] estes antropófagos se achariam na precisão de largarem suas habitações; e uma vez perseguidos, se embestariam nos matos à proporção que estes fossem desmanchando e com o andar do tempo se domariam (se é possível domar monstros deste toque)”. Para sobreviver a monstros desse toque, os Tikmũ’ũn tiveram que fugir. Como descrevem Isael e Sueli Maxakali:

[…] havia o espírito de uma criança, yãmĩy nãg, que sempre nos avisava quando os brancos se aproximavam. À noite, ele vinha e batia nas madeiras da casa do seu pai tok tok tok tok e avisava: “Pai! Pai! Vocês devem partir! Leve os Tikmũ’ũn pra longe daqui! Escondam-se! Os brancos estão vindo te matar!”. E então os Tikmũ’ũn fugiam outra vez. Por fim, chegamos onde hoje ficam as aldeias de Água Boa (Santa Helena de Minas, MG) e Pradinho (Bertópolis, MG) e nos escondemos debaixo de uma pedra bem alta, que chamamos mikax kaka, “debaixo da pedra”. Mas os brancos então já estavam por toda parte e nos perseguiam, querendo nos matar. Quando os brancos se aproximavam ou os Tikmũ’ũn ouviam passar um avião, corriam para dentro de uma gruta em Água Boa, onde viviam vários morcegos, e esperavam os brancos passarem. Os brancos iam embora, pensando que tinham acabado com todos, mas eles estavam lá, escondidos. Com o tempo, não teve mais jeito e eles tiveram que se envolver com os brancos. Os brancos traziam cachaça, tecidos, facas, foices e distribuíam entre eles. Naquele tempo, os Tikmũ’ũn não sabiam das coisas. […] Os brancos tiravam fotos dos homens e das mulheres e mostravam pra eles dizendo: “Aqui está a alma (koxuk) de vocês! Se vocês não forem embora daqui, vamos destruir vocês todos!”. E os Tikmũ’ũn, com medo de perderem seus yãmĩyxop (espíritos), fugiam. Assim os fazendeiros foram tomando as nossas terras e derrubando toda a mata. Nós mesmos, quando crescemos em Água Boa, vimos com nossos próprios olhos a mata grande. Mas com o tempo os fazendeiros derrubaram tudo e a floresta virou capim. Nós, Tikmũ’ũn, tivemos que escolher: ou perdíamos a terra ou perdíamos a língua e os cantos. Preferimos perder a terra do que perder os cantos. Se tivéssemos escolhido perder os cantos, já não existiríamos mais.

Quando o etnólogo alemão Curt Nimuendaju visitou os Tikmũ’ũn, em 1939, estimou-os em 120 sobreviventes, divididos entre as aldeias de Água Boa e “Pé da Pedra” (Mikax Kaka), território mais conhecido como Pradinho. Nas palavras do pesquisador, àquela altura, “já dois terços desse paraíso dos índios lavradores e caçadores, que estava coberto de mata ininterrupta, estão transformados em vastas pastagens de capim colônia, na sua maior parte, sem uma única rez, pelos intrusos” (NIMUENDAJU, 1958 [1939], p. 56). Ali, nas cabeceiras do rio Itanhém, o cerco contra os Tikmũ’ũn se fechou. Foi somente após a visita do etnólogo e a publicação de um relatório que a primeira área foi oficialmente reconhecida e demarcada para os indígenas em Água Boa, no ano de 1940. Mais de uma década e meia se passou até que a área do Pradinho também fosse demarcada, em 1956, após a comoção gerada pelo assassinato de Antônio Cascorado Maxakali, liderança morta e queimada pelos fazendeiros da região. Apesar da proximidade, as duas glebas de terra ainda permaneceram divididas por um corredor de fazendas até o final da década de 1990, quando uma grande campanha internacional conseguiu a unificação e a desintrusão do território. 

Mapa desenhado por Fernando Maxakali, Bruno Maxakali, Marilton Maxakali, Vitorino Maxakali, José Menezes Maxakali, Cândido Maxakali, Haroldo Maxakali e Jacinto Maxakali a partir de oficina coordenada pelo antropólogo Douglas Campelo. Ao centro, a terra demarcada e unificada. Ao redor, o território ancestral excluído das demarcações. Foto: Edgar Kanayko

Apesar da conquista histórica, os limites do território reconhecidos naquele momento ignoraram toda a extensão de terra nos arredores de Água Boa e Pradinho que também fazem parte do território de ocupação tradicional tikmũ’ũn. Na prática, a nova homologação os manteve confinados em uma das menores terras indígenas demarcadas de todo o país. Além disso, a floresta foi reduzida a um imenso deserto de capim, paisagem que hoje predomina na terra indígena Maxakali. As violações de direitos e o esbulho de suas terras jamais foram reconhecidos ou reparados pelo Estado brasileiro. Apesar dos reiterados apelos das lideranças pela revisão dos limites do território, nenhum processo formal de reconhecimento e delimitação de terra indígena foi instaurado pela Funai nos últimos anos. Nunca houve, em suma, um estudo que defina e destine a eles as terras em condições garantidas pela Constituição de 1988, quais sejam, “as terras habitadas em caráter permanente, as utilizadas para suas atividades produtivas, as imprescindíveis à preservação dos recursos ambientais necessários a seu bem-estar e as necessárias a sua reprodução física e cultural, segundo seus usos, costumes e tradições” (Artigo 231; §1).

Apesar do cenário devastador, engana-se quem espera encontrar nas aldeias tikmũ’ũn apenas a miséria que lhes foi e ainda é imposta. Esses homens e mulheres são alegres, vibrantes, e orgulham-se de sua força e beleza. São grandes artistas, mestras e mestres cantores, donos de uma vastíssimo repertório de cantos e histórias dos espíritos yãmĩyxop. Tudo o que eles perderam, tudo o que lhes foi roubado, os seus espíritos registraram. Nas palavras de Isael: 

O nosso canto preserva alguns bichos grandes que não existem mais hoje e os desenhos também preservam alguns bichos. Sucuri grande não tem mais, onça grande não tem mais, tamanduá está acabando, jacaré também não existe mais, mas no nosso canto está registrado, o canto e o desenho mostram para os nossos estudantes indígenas na escola. Por isso que eu falo que alguns bichos acabaram, não existe mais, mas estão aí e não acabam porque nós continuamos a fazer desenhos para mostrar para as crianças explicar no desenho dos bichos que tinha bichos grandes, mas hoje não tem e só tem o nome, só tem imagem, só tem o canto.

Esses espíritos, que são povos gaviões, papagaios, antas, macacos, folhas, mandioca, entre outros, viviam andando pela mata e hoje vêm de suas terras outras visitar os Tikmũ’ũn em suas aldeias para comer, cantar, dançar e alegrar estes seus aliados de tempos imemoriais. E, cantando, percorrem toda a diversidade da fauna e da flora das matas de outrora e que os jovens de hoje só conhecem de ouvir cantar. Porque os cantos surgiram da terra, foram literalmente “tirados” da terra ao longo das andanças dos antigos pelo território ancestral. De fato, praticamente não há evento narrado pelos Tikmũ’ũn de onde os seus antepassados não tenham “tirado cantos” (kutex xut). “Essa história tem canto” ou “este lugar tem canto, tem história”, costumam dizer os pajés sempre que se referem a lugares específicos, como uma cachoeira, uma pedra, uma montanha, a nascente de um rio… No limite, é como se todo o seu território fosse uma imensa partitura musical. Era no trânsito incessante dos antigos pelas florestas que os cantos surgiam, registrando eventos singelos, variedades de plantas e bichos que encontravam pelo caminho. Por isso mesmo, como concluiu Isael numa de suas falas recentes: “sem terra, não tem canto”. 

Sem terra, não tem cultura

Como consequência da demarcação incompleta, já no início dos anos 2000, um grave conflito culminou na saída de dois grupos da terra indígena Maxakali, liderados por Noêmia Maxakali e Rafael Maxakali, inaugurando uma nova fase da luta dos Tikmũ’ũn por seu território ancestral. Após deixarem a reserva, no ano de 2005, os grupos se uniram e iniciaram uma retomada nos arredores da terra demarcada, na área de um antigo aldeamento conhecido como Tehakohit, no município de Santa Helena de Minas (MG). O movimento despertou a ira dos fazendeiros locais, que se aproveitaram do conflito entre os indígenas para incitar um massacre. Diante da crescente tensão e da iminência de uma guerra, uma decisão judicial obrigou a retirada das famílias do local. Inicialmente transferidas para uma quadra de futebol no próprio município, os Tikmũ’ũn foram, em seguida, deslocados pela Funai para um sítio nos arredores de Governador Valadares. Alguns meses depois, foram transferidos para uma terra da União, no Município de Campanário, onde viveram por quase dois anos aguardando a aquisição de uma nova terra pelo Governo Federal. Por fim, em 2007, os dois grupos se mudaram para duas terras adquiridas pela Funai, onde foram fundadas as aldeias Cachoeirinha (Teófilo Otoni, MG) e a Aldeia Verde (Ladainha, MG). 

Adquiridas às pressas, nenhuma dessas reservas possuía cursos d’água no seu interior, algo essencial para o bem viver das famílias e para a realização de uma série de seus rituais yãmĩyxop. Além disso, em pouco mais de dez anos, a população da Aldeia Verde quase quintuplicou, tornando difícil a convivência entre grupos que, tradicionalmente, preferem se espalhar pelo território e garantir a própria autonomia política. Assim, a reivindicação pela ampliação do território, tão antiga quanto a chegada das primeiras famílias ao local, só fez ganhar força ao longo da última década. Numa carta das lideranças de Aldeia Verde encaminhada ao Ministério Público Federal, em 2018, os Tikmũ’ũn afirmavam: 

Poucas coisas são piores e nos deixam mais tristes, hoje, do que a falta de um rio no nosso território. Sem um rio, não temos onde pescar, onde banhar, onde lavar nossas roupas ou deixar a mandioca cozida descansar. Sem o rio, as nossas crianças não têm onde brincar e crescerem fortes e por isso adoecem tanto. Sem o rio, os nossos rituais também estão prejudicados: os nossos espíritos não têm onde se banhar quando vêm dançar conosco, nem nós, homens e mulheres, quando nos pintamos para dançar com eles. Os espíritos também não estão vindo para dar banho nas crianças como antigamente; o macaco-espírito não está banhando com as mulheres como fazia, as mulheres‐espírito não têm onde pescar. Os meninos também não têm onde banhar quando os espíritos-lagarta levam eles para ficar um mês na kuxex (casa dos cantos) sem poderem ver suas mães e irmãs. No final do resguardo, o casal não tem um rio onde soprar e encerrar o ritual como antigamente. 

As sucessivas demandas pela ampliação do território da Aldeia Verde jamais foram atendidas. Entretanto, foi durante os anos que viveram ali que o casal de lideranças Isael e Sueli, junto de toda a comunidade que se constituía naquele território, produziu alguns de seus trabalhos mais emblemáticos como artistas, cineastas e educadores. A criação da Aldeia Verde, no ano de 2007, praticamente coincidia com a criação do Curso de Licenciatura Intercultural para Educadores Indígenas, o FIEI Pro-lind, inaugurado em abril de 2006 na UFMG. Como trabalho de conclusão de curso, os estudantes Maxakali da primeira turma do FIEI, dentre eles Isael e Sueli, elaboraram o livro Hitupmã’ax: curar (Literaterras, 2008), publicação que combinava texto, desenhos e aquarelas numa refinada apresentação da cosmologia e dos processos de cura entre os Tikmũ’ũn. Foi também nos primeiros anos em Aldeia Verde que Isael e Sueli iniciaram seus trabalhos como cineastas, dando início a uma produção que recentemente ganhou repercussão nacional e internacional. É nesse cruzamento, portanto, entre arte, educação e defesa do território, que o casal se forma e é formado como lideranças de seu povo, o que explica boa parte do que se seguiu a partir dali. 

Sem terra, não tem cura

Quando a pandemia de Covid-19 foi declarada pela Organização Mundial da Saúde (OMS), em março de 2020, a situação do confinamento territorial, acirrada pelo isolamento pandêmico, dificultou ainda mais a manutenção da paz interna à comunidade. O crescente assédio de pastores neopentecostais das vizinhanças também contribuiu para dividir as lideranças locais na Aldeia Verde. A reivindicação já antiga por mais terra, com rio e espaço para a abertura de novas casas e novas roças, tornou-se então um imperativo. Para evitar um conflito, primeiro as famílias que desejavam sair abriram uma nova aldeia logo na entrada da reserva, enquanto buscavam alternativas para deixar o território. No dia 1º de junho de 2020, enquanto ainda estavam lá, recebi este áudio de Sueli por WhatsApp: 

Nós estamos pensando de sair. Porque nós precisamos ter uma terra adequada para praticar os nossos rituais. Uma terra onde tenha água. E também a gente queria que as nossas crianças e jovens tivessem uma escola que respeitasse o nosso direito e mostrasse como a gente está preservando a nossa cultura. A escola tem que ser uma Aldeia-Escola. Então a gente está pensando em criar essa forma, essa maneira da gente estar num lugar onde a gente tenha liberdade. Nós precisamos ter liberdade em cima da terra. Por isso nós pensamos de sair. Nós estamos muito preocupados com essa doença, com essa pandemia. Mas no meio dessa pandemia está tendo muito desentendimento aqui também. A população Maxakali de Aldeia Verde saiu de Água Boa para Ladainha devido ao conflito e agora a preocupação minha é devido ao conflito de novo. Por isso eu penso que nós queremos colaboração de todos os órgão do Brasil. Que eles entendam a nossa luta e tenham solidariedade com as nossas preocupações. (Sueli Maxakali, áudio de WhatsApp, 01 jun. 2020)

Duas semanas depois, mais de 100 famílias que viviam na Aldeia Verde deixaram a reserva e se mudaram para uma terra nas vizinhanças. Isael Maxakali, então vereador no Município de Ladainha, articulou o apoio do prefeito local, que arrendou uma fazenda durante seis meses, isto é, até o final do seu segundo mandato. Em poucos dias, as famílias ergueram suas casas e criaram a Aldeia Nova, às margens do Rio Mucuri do Norte. O encontro com o rio provocou uma verdadeira efervescência na comunidade, que realizou rituais que há muitos anos estavam impedidos de realizar. 

Os Tikmũ’ũn na Aldeia Nova, durante o primeiro “Encontro de Pajés”, realizado em agosto de 2020. 

Foto: Isael Maxakali

Sueli Maxakali e suas alunas pescando no Rio Mucuri do Norte, na Aldeia Nova. 

Foto: Isael Maxakali

Ao mesmo tempo, enfrentaram ali a chegada do coronavírus na comunidade, revivendo as lembranças dos tempos quando seus parentes foram quase extintos pelas doenças trazidas pelos brancos. Com medo de perder seus principais sábios e sábias, decidiram acelerar o processo de formação de jovens pajés, reunindo as velhas e novas gerações em “encontros de pajés” na própria aldeia. Durante o primeiro desses encontros, realizado em agosto de 2020, Sueli registrou a seguinte fala de Isael:

Antigamente, os brancos trouxeram doenças para as aldeias dos Tikmũ’ũn, mas, quando os antigos conheceram as doenças, eles fugiram para dentro da mata grande e se esconderam para não adoecerem. Eles se escondiam na mata antigamente. Mas hoje onde iremos nos esconder? Por acaso sobrou alguma mata grande por aqui para nos escondermos? Hoje não temos mais espaço!  Não temos mais como nos esconder! Hoje só temos mesmo os nossos yãmĩyxop para nos proteger e nos fortalecer e soprar a doença para longe. Todos os yãmĩyxop cantam para varrer a doença ruim e impedir que ela chegue nas nossas aldeias. Os nossos pajés são muito fortes, com os nossos yãmĩyxop. Os yãmĩyxop são fortes de verdade! (Isael Maxakali, agosto de 2020)

Alguns meses depois, durante as eleições municipais de 2020, o candidato à sucessão do prefeito que arrendou o terreno foi derrotado. Em janeiro de 2021, assim que tomou posse, o novo prefeito retirou o apoio das famílias e suspendeu a renovação do arrendamento, entregando os Tikmũ’ũn da Aldeia Nova à própria sorte. Não obstante, um laudo do Corpo de Bombeiros recomendou a remoção da comunidade do local, devido aos riscos de rompimento de uma usina hidrelétrica localizada a montante da nova aldeia. Desamparadas, as lideranças reiniciaram as buscas por outra terra, dispostas inclusive a arrendá-la com recursos próprios, enquanto aguardavam a chegada de uma emenda parlamentar para aquisição de um terreno. Por fim, conheceram um casal disposto a alugar um pequeno sítio de 35 hectares cortado por um ribeirão no distrito de Concórdia do Mucuri, no mesmo município. Porém, tão logo se mudaram para o local – a segunda mudança em menos de um ano –, as famílias descobriram que tinham sido vítimas de um golpe. Tratava-se de um casal de funcionários do verdadeiro proprietário que negociou o imóvel ilegalmente e fugiu com o dinheiro adiantado pelos indígenas.

Assim que as famílias se instalaram no local e ergueram mais uma aldeia, batizada como Hãmkãim em homenagem a uma mulher ancestral, o proprietário entrou com um pedido de reintegração de posse na justiça. Era o início de mais uma dura batalha, marcada pelo temor de um despejo e a continuidade das buscas por terras na região. Seguiu-se então uma longa negociação na qual se buscou a indicação de terras públicas junto a diversos órgãos do estado para onde as mais de 100 famílias pudessem ser transferidas. Após uma rodada de buscas e negociações, a Superintendência de Patrimônio da União (SPU) indicou uma terra do Governo Federal localizada em Itamunheque, zona rural de Teófilo Otoni, atualmente cedida para o Instituto Federal do Norte de Minas Gerais (IFNMG). No início de setembro de 2021, Isael e Sueli, acompanhados das autoridades da Funai, SPU e MPF visitaram o local. Tão logo fizeram a visita, os rumores da “chegada de índios” na região de Itamunheque foram ventilados na rádio local, despertando um movimento de fazendeiros contrários à possibilidade de mudança dos indígenas para o terreno. Em poucos dias, esses fazendeiros recolheram centenas de assinaturas contra os Tikmũ’ũn. Percebendo que as negociações com o IFNMG seriam prejudicadas pela reação contrária, a comunidade, junto dos seus yãmĩyxop, decidiu se adiantar e retomar o território na madrugada do dia 28 de setembro de 2021. Como relembra Isael:

Nós chegamos à noite. Fizemos a mudança à noite. Era onze horas mais ou menos quando a gente saiu de lá e chegamos aqui de madrugada, duas, três horas mais ou menos. Dormimos ali mesmo, no meio da estrada, onde está a placa do Instituto Federal. Nós retomamos essa terra aqui, mas a luta continua! Queremos aumentar a terra para ficar bom. Os Tikmũ’ũn vão se multiplicar, as crianças vão envelhecer, se casar e ter filhos. Então quando um novo governo que goste dos Tikmũ’ũn entrar vamos precisar ampliar a terra. Para nós e para os nossos parentes. Isso sim é bom! Porque sem terra, não tem cinema. Se a gente tiver terra, a gente vai ter cinema. Vamos fazer imagens para mostrar. Mas sem terra, o que vamos filmar? Por isso é bom termos terra, para termos cinema também e as crianças, nossos alunos, assistirem e aprenderem. Sem terra, não tem escola. Mas agora vamos ter casa de cinema aqui na aldeia. Vamos ter escola aqui também. Agora vão ter muitas coisas acontecendo aqui onde a gente mora. Hoje a gente está só começando aqui nessa terra, estamos começando do zero, por isso ainda não tem muita coisa. Mas agora vai ter… Eu vou buscar com Sueli e com toda a comunidade! Vamos fazer documentos para fortalecer os Tikmũ’ũn. Os nossos pajés aqui são muito fortes! E os nossos professores também! Muitos brancos gostam do nome da nossa aldeia! Estamos fortalecendo a nossa cultura! As nossas coisas verdadeiras! Temos nossas pinturas, nossa língua, nossa comida, temos o nosso modo de ensinar as crianças, a nossa língua… Então eu quero muito fortalecer a nossa tradição. Por isso demos esse nome de Aldeia-Escola-Floresta. (Isael Maxakali, abril de 2022)

A Aldeia-Escola-Floresta

Desenho de Isael Maxakali. Novembro de 2021. 

O projeto da Aldeia-Escola-Floresta foi sonhado e formulado pelas lideranças Tikmũ’ũn e seus parceiros no curso dessa saga interminável em busca de um lugar para o futuro da sua comunidade e do seu povo. Trata-se do desejo de fortalecer o vastíssimo complexo musical, ritual e linguístico dos yãmĩyxop numa terra adequada para o seu florescimento; o desejo de trazer a mata e os bichos de volta, de repovoar a paisagem com as imagens vivas dos seus ancestrais. Trata-se ainda de multiplicar as iniciativas e os cruzamentos entre arte e educação na defesa e na conservação do território, o que as famílias Tikmũ’ũn, apesar de todas as adversidades, nunca cessaram de fazer. Enquanto atravessavam três mudanças de terra e enfrentavam a maior pandemia dos últimos tempos, Isael Maxakali venceu o prêmio PIPA de Arte Contemporânea, em agosto de 2020, pelo conjunto de sua obra. Em novembro do mesmo ano, lançaram o longa Nũhũ yãgmũ yõg hãm: Essa Terra É Nossa, vencedor do prêmio de melhor filme na Competitiva Internacional do Sheffield DocFest, na Inglaterra, um dos principais festivais de documentário do mundo. Com a câmera que levaram consigo na mudança, Sueli ainda realizou o seu curta mais recente, Yãy tu nũnãhã payexop: encontro de pajés, que recebeu Menção Honrosa pelo júri do 23º Festcurtas.bh. Quando, em novembro do mesmo ano, Isael contraiu Covid-19, ele se isolou numa pequena casa da fazenda arrendada pela prefeitura e pôs-se a desenhar uma das séries mais impressionantes do seu trabalho recente, exibida parcialmente na exposição Moquém Surari, no MAM-SP, com curadoria de um dos maiores incentivadores do movimento liderado por eles nos últimos anos, o artista Jaider Esbell.  

Já em 2021, poucos meses após criarem a Aldeia Hãmkãim, na segunda terra para onde se mudavam, Sueli movimentaria toda a comunidade nos preparativos de sua instalação Kũmxop koxuk yõg: o espírito das minhas filhas, levada ao pavilhão principal da 34ª Bienal de São Paulo. A instalação, que reuniu mais de cem vestidos, dezenas de redes de pesca e máscaras de peixes tecidos pelas mulheres da comunidade, remetia ao ritual das yãmĩyhex, estas mulheres ancestrais que no tempo dos antigos mergulharam nas águas do rio (quando havia rio) e se transformaram em jiboia. O ritual também deu origem ao longa Yãmĩyhex: as mulheres-espírito, finalizado em 2019 e vencedor do prêmio Carlos Reichenbach de melhor longa-metragem pela prestigiada Mostra de Cinema de Tiradentes. Enquanto se preparavam para realizar a terceira mudança de terra, Sueli e Isael ainda receberam o título de doutores por notório saber nas áreas de Letras e Comunicação Social, respectivamente, pela Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG), coroando mais de duas décadas de presença na universidade, como estudantes e professores.

Instalação Kũmxop koxuk yõg: os espíritos das minhas filhas, de Sueli Maxakali, no Pavilhão da 34ª Bienal de São Paulo, em setembro de 2021.  

Foto: Levi Fanan

Pouco depois de chegarem ao território de Itamunheque, enquanto enfrentavam o início das fortes chuvas que atingiram toda a região na virada do ano, o casal reuniu alguns pajés em Teófilo Otoni para colocar no papel o sonho da Aldeia-Escola-Floresta, traçando uma cartografia afetiva do novo território que também deu origem ao site do projeto. Nos desenhos e mapas que fizeram, via-se uma aldeia multicolorida, povoada por árvores, roças, bichos, espíritos, rios cheios de peixe, terra cheia de vida, uma paisagem muito diferente da que encontraram por lá. O território da antiga fazenda Itamunheque, com cerca de 120 hectares, quase nenhuma mata preservada e cortado pelas águas turvas do Rio de Todos os Santos, contaminadas pelos rejeitos da cidade de Teófilo Otoni, está longe do sonho da Aldeia-Escola-Floresta tal como imaginado pelos Tikmũ’ũn. Mas o sonho e a luta continuam, como não se cansam de nos ensinar Isael, Sueli e sua comunidade:

Porque nós chamamos Aldeia-Escola-Floresta? Porque nós, comunidade da Aldeia-Escola-Floresta, queremos terra para os yãmĩyxop, para as crianças, para o futuro. Porque nós nascemos todos junto à floresta, nascemos todos junto à caça. Essa terra é nossa mãe porque ela alimenta todos nós. Se eu sair daqui, se eu for para o mato, o meu yamiy está me acompanhando, eu vou cantando dentro do mato. Se eu brincar no rio, outro yamiy vai me acompanhar. Eu vou imitar qualquer bicho: peixe, jacaré, andorinha, vou fazer seus cantos. Por isso é que chamamos Aldeia-Escola-Floresta. Aqui, a minha casa é escola, porque estamos passando o nosso conhecimento para os jovens que estão aprendendo agora. Nós somos professores. Nós estamos falando. Eles estão escutando as falas. Pegamos a palavra boa para esperar a nossa memória para não cair. Tem que crescer. Ter o conhecimento diferente, pegar o outro conhecimento para crescer a Aldeia-Escola-Floresta. Por isso todo lugar é sala de aula dentro da aldeia.  (Isael Maxakali, janeiro de 2022)

Procuramos uma terra para poder sobreviver. Precisamos de conseguir uma terra que tenha nossa história. Meu yãmĩy é forte. Ele precisa de uma terra pra cantar de noite e nós darmos comida todos os dias. E nossas crianças vão aprendendo. Por isso que pensamos: Aldeia-Escola-Floresta. Ali nossas crianças vão aprender desde pequenas a dar comida para nosso ritual. E é passado dos mais velhos para nossas crianças. Quando eu estiver mais velha, eu vou passar o meu para a minha neta. E aí é minha neta quem vai cuidar do ritual. É sempre passado. Quando o tatakox traz yãmĩyhex, quando estamos velhas, passamos para nossas crianças. E toda a terra por onde meu povo passou também tem tudo registrado. Tem os nomes, todos os locais têm nomes indígenas. Tem identificações de onde surgiu cada canto, onde cada pessoa foi enterrada. Nós, indígenas, donas da terra, precisamos da terra para sobreviver. Hoje temos vários sonhos para essa terra. Reflorestar essa terra. Quando eu estiver velha quero ver a Aldeia-Escola-Floresta reflorestada, com as nascentes, com a cara mesmo de Aldeia-Escola-Floresta. De verdade. (Sueli Maxakali, janeiro de 2022)

O sonho da Aldeia-Escola-Floresta. Desenho de Sueli Maxakali. Novembro de 2021.