Realizado entre outubro e dezembro de 2019, no Rio de Janeiro, em São Paulo e em Brasília, o festival Assim Vivemos destaca importantes obras audiovisuais contemporâneas que abordam, a partir de múltiplas perspectivas, o tema da deficiência. Além de reunir, de modo pioneiro no país, criações documentais e ficcionais sobre personagens que enfrentam diferentes desafios físicos e intelectuais, o evento também chama atenção pela ampla disponibilização de recursos de acessibilidade em sua programação, oferecendo, em todas as sessões, os serviços de audiodescrição, legendas e tradução em Libras, além de catálogos em braile. Diretora geral da mostra, cuja programação ainda inclui debates e oficinas, a atriz e pesquisadora Graciela Pozzobon foi a convidada do curso Transversalidades em novembro de 2019, durante a passagem do Assim Vivemos pelo CCBB DF.
Graciela Pozzobon iniciou o encontro trazendo algumas informações sobre sua trajetória profissional. Atriz, produtora, dubladora e narradora, a convidada conta ter se aproximado dos debates sobre inclusão e acessibilidade em 2002, quando teve a oportunidade de interpretar uma personagem cega em um curta-metragem universitário. Surpreendentemente, o filme teve grande circulação em festivais nacionais e internacionais, e foi na Alemanha que a equipe do filme teve contato com um festival totalmente dedicado à temática da acessibilidade, inspirando a iminente iniciativa em solo brasileiro.
“Na época, o festival tinha recursos de acessibilidade, porque não fazia nenhum sentido você ter exibição de filmes sobre deficiência sem recursos de acessibilidade. Então, tinha língua de sinais, legendas com indicação de ruídos, braile e audiodescrição – uma narração extra que descreve o conteúdo imagético de um produto para as pessoas cegas”, relata. Graciela conta, no entanto, que àquela altura não havia quem prestasse, profissionalmente, esses serviços no Brasil. Foi a partir de então, tendo em vista a realização da primeira edição do festival, que ela começou a aprofundar suas pesquisas sobre audiodescrição.
“Naquele momento, armamos o esquema de um casal, normalmente uma voz feminina e outra masculina, que, durante o filme vão fazendo as falas de todos os personagens e mais a descrição de todo o conteúdo imagético do filme. A descrição entra entre as falas dos personagens, para que a pessoa compreenda o que é fala e o que é descrição”, explica. Para cada filme exibido, desde então, são elaborados estudos, roteiros, ensaios, revisões e consultorias, até alcançar o resultado final.
Da intuição ao conhecimento
Se, no início, a criação dos roteiros se dava a partir de um processo bastante intuitivo, a cada nova edição a equipe do festival pôde encontrar alguns parâmetros para essa criação, reconhecendo, no entanto, frequentemente a partir de diálogos com o público, a diversidade de perspectivas que caracteriza o público com deficiência. “Concluímos, por exemplo, que uma pessoa que nunca viu tem uma compreensão do mundo muito mais conceitual do que visual. Ele entende o que é um pôr-do-sol, o que é uma montanha, mas não visualiza esses elementos. E que um outro rapaz, que tinha ficado cego aos 18 anos, tinha todo um elenco de conteúdo visual no cérebro dele que fazia com que, quanto mais elementos visuais, mais ele montava na cabeça dele aquela cena que estava sendo descrita”.
Graciela ressalta que, em contraste com as regulamentações referentes à acessibilidade arquitetônica e à tradução em Libras, mais consolidada, a audiodescrição deve ser entendida como uma prática ainda mais recente no contexto brasileiro. “Muitas vezes, quando a gente fala em acessibilidade, a gente pensa em banheiro, em rampa, em ambiente – e não em conteúdo. Isso é o que mais se vê, embora aos poucos os editais de produção em cinema e cultura em geral começaram a incluir a palavra ‘acessibilidade’. Mas ainda falta muita informação até mesmo para quem faz os editais”, analisa.
Mais adiante, a convidada problematiza inclusive a noção de “inclusão”, ressaltando a situação inicial de exclusão como um pressuposto que não deve ser reforçado. Em seu lugar, defende a ideia de “pertencimento”, a partir da qual os recursos de acessibilidade passam a afirmar a sociedade plural da qual fazemos parte – e à qual todos e todas, sem exceções, devem se sentir pertencentes.
“Se uma pessoa com paralisia cerebral que tem dificuldade de caminhar vai num ambiente impróprio onde não há as acessibilidades que ele precisa, a deficiência se acentua. Se essa pessoa vai para um ambiente com todos os elementos que ele precisa, essa deficiência diminui, e ele fica mais próximo da experiência dos demais”, exemplifica, ressaltando ainda a importância de considerar as dimensões coletivas – e não somente individuais – de qualquer tipo de superação. “Se eu preciso do meu meio ambiente, da minha escola acessível, do teatro acessível, essa superação não pode ser individual”, afirma, fazendo referência a uma frase do documentarista Daniel Gonçalves, portador de paralisia cerebral e autor de um dos filmes exibidos no festival de 2019, “Meu Nome é Daniel”.
Antes de abrir o encontro às perguntas do público, Graciela exibiu ainda três vídeos. Enquanto os dois primeiros trazem experiências de audiodescrição e acessibilidade realizadas no Teatro Municipal Carlos Gomes, no Rio de Janeiro, e também no tradicional desfile das escolas de samba da capital carioca, o último, intitulado “Uma abordagem diferente” (Gino Ceriachi, 2018), retratava a rotina de uma escola inclusiva situada na pequena cidade de Piandimeleto, na Itália.
Como principais questões levantadas durante a conversa que encerrou o encontro, figuraram reflexões sobre o contexto educacional brasileiro, ressaltando, por exemplo, os abismos entre a legislação sobre a acessibilidade e a efetiva implementação dos respectivos recursos, assim como a importância da participação de familiares no contexto educacional de suas filhas e filhos, entendendo que se trata de um momento pedagógico que se extende também aos adultos.