Na edição de novembro do Laboratório de Crítica, o Programa CCBB Educativo – Arte & Educação recebeu, no CCBB BH, a historiadora Renata Bittencourt, atual diretora executiva do Instituto Inhotim. Com vasta experiência em gestão cultural de instituições artísticas, Renata traz uma fala ancorada sobretudo no contato com imagens, na história da arte e na necessidade de uma reposição do repertório crítico a partir de um contexto em que novas questões vêm sendo moduladas pela produção artística.
Tais questões, em sua visão, ganham espaço a partir da emergência de vozes que durante muito tempo não foram convocadas a compor a narrativa da história da arte. Ao se apresentarem, essas vozes produzem discursos sobre si e o mundo, ampliam os limites da crítica e impõem uma abertura a novos paradigmas narrativos. Mostram, enfim que outras histórias da arte devem ser contadas.
Se alguns têm o poder de fazer preponderar seus pontos de vista, sendo reconhecidos como cânones, cabe à produção artística contemporânea mostrar que esses cânones introduzem leituras de mundo definidas por contextos e visões muito específicos, mas nunca definitivos ou universais. À crítica cabe, por sua vez, vocalizar a especificidade de cada imagem, rever as tradições ali implicadas e apontar para as regiões da história da arte em que muitas faltas se revelam.
Poder olhar, poder ser visto
“Os afetos negros não aparecem na pintura”, diz Renata. Segundo a curadora, a própria história da arte tem sido revista a partir do movimento de artistas que se mobilizam para fantasiar, fabular e inaugurar caminhos em que esses afetos podem caber. Não se trata apenas de tematizar esses afetos, colocando-os em pé de igualdade com os afetos comumente retratados na história da arte: trata-se, pelo contrário, de apontar para a singularidade dos afetos negros, frequentemente entrelaçados com experiências de exclusão e subalternidade.
Um bom exemplo disso está no relato que abre um dos artigos incluídos na bibliografia indicada pela pesquisadora. Trata-se de “Art on my mind”, escrito pela artista, teórica e ativista estadunidense Bell Hooks. No texto, ao relembrar seus tempos de escola, Hooks conta ter feito algumas pinturas que ganharam prêmios. Seu professor de artes, um homem branco, sempre a encorajava a pintar e fazia elogios ao trabalho, sobretudo quando diante de sua família. No entanto, essa era uma forma de incentivo que, para seus familiares pouco ou nada importava. “Para eles”, conta Hooks, “as imagens que eu pintava nunca pareciam com nosso mundo familiar, e por isso eu nunca poderia ser uma artista”. E prossegue: “Eu fui ensinada a acreditar que não havia pessoa alguma naquela escola que saberia algo sobre como é a vida real de pessoas negras”.
É sobre encontrar uma imagem com a qual seja possível se identificar. Sobre perceber, diante dela, que mesmo as mais sutis camadas de nossas subjetividades podem ganhar a forma do visível – e do dizível. Os pais de Hooks entendiam isso, e quando ela, ainda criança, fazia pinturas que só correspondiam às expectativas de um professor branco, nada do que ela produzia teria valor para eles. “Para que mais pessoas negras se identifiquem com arte, nós devemos mudar os modos convencionais de pensar sobre a função da arte. Deve haver uma revolução na forma como vemos, na maneira como olhamos”, diz Hooks.
Nesse contexto, segundo Renata, as representações devem ser “lugares de contestação”. Na visão da curadora, imagens são construções e invenções: trata-se de enunciados enraizados na escrita de uma história supostamente universal, mas a partir de tramas e regras que excluem muitas vozes. Caberia, então, a artistas, críticos e curadores, então, desnaturalizar o modo por meio do qual elas veiculam e impõem verdades sobre muitos grupos sociais. O que se reivindica, por fim, é a possibilidade da diferença.
Corpo negro, corpo político, corpo específico
De acordo com o filósofo estadunidense Cornel West, lidar com a diferença significa aproximar-se de questões como “exterminismo, império, classe, raça, gênero, orientação sexual, idade, nação, natureza e região”. Para West, uma nova política cultural da diferença está determinada a descartar o monolítico e homogêneo em nome da diversidade, da multiplicidade e da heterogeneidade; a rejeitar o abstrato, geral e universal em prol do concreto, específico e particular; a historiar, contextualizar e pluralizar, destacando sobretudo aquilo que é contingente, provisório, variável, incerto, instável e fugaz.
É sobre o que impacta os corpos – todos eles – aqui e agora. O que se entende como universal acaba por ser, fatalmente, redefinido. E em que medida um repertório simbólico, localizado na branquitude, pode ser transmutado em uma gramática mais ampla e abrangente? A partir de tal pressuposto, Bittencourt vai trazendo obras de artistas que operam nesse espaço lacunar. Criados por artistas visionários, cujos olhares insubmissos operam justamente essa reposição de vocabulário, os trabalhos apresentados pela curadora apontam à complexidade da existência negra. Em sua visão, tais artistas produzem uma arte no sentido de “revelar” e “dar a ver” algo. “Suas obras têm uma complexidade de ordem mística”, afirma Renata, fazendo referência a imagens totêmicas, que falam ao mesmo tempo de ancestralidades e futuros possíveis.
Origem e atualização: ao que parece, essa alternância seria o elemento que dá sentido ao trabalho desses artistas. A partir da apresentação, percebemos que tal movimento é marcado por um gesto que remete a uma certa precariedade, algo próximo do que um dia foi visto como “primitivo”, como arte popular. Adota-se, em muitos casos, uma estética “subalternalizada” pela história da arte como estratégia metalinguística. A crítica de arte é levada, então, a (re)ver determinados códigos e vocabulários, assumindo os riscos implicados na reescrita de sua própria história. As obras produzidas por artistas negros, hoje, nos ensinam sobre o que nunca fomos, criam um espaço no qual as dores de um povo podem mobilizar a empatia do outro. A arte se afirma, por fim, como uma plataforma de encontro em que a empatia é possível.
Uma pós-crítica para um pós-museu
Após abordar uma variedade de artistas negros e suas produções, Renata Bittencourt finaliza sua fala apresentando o mais recente trabalho da artista estadunidense Kara Walker. Comissionada pela Hyundai em 2019, a obra “Fons Americanus” ocupa temporariamente uma importante sala da galeria Tate Modern, situada em Londres, na Inglaterra. Ao se apropriar da estrutura de um fontanário ou chafariz, o trabalho tematiza elementos bastante específicos da diáspora africana, tendo como fio condutor dois elementos cuja potência simbólica atravessa toda a história da arte: a água e o monumento.
Inspirada no Victoria Memorial, localizado em frente ao Palácio de Buckingham, a fonte de Walker inverte a função normalmente atribuída a esse tipo de construção. Se aquele monumento tinha como função homenagear as conquistas da então rainha Victoria , a obra de Walker opera na direção contrária. Em “Fons Americanus”, a artista substitui as conhecidas alegorias mitológicas por imagens bastante literais. remontando ao comércio transatlântico de povos escravizados e à forma como o sequestro de povos negros repercute até hoje. Assim como toda a diáspora negra, Kara Walker é herdeira desse desenraizamento, e as imagens criadas pela artista revelam, sem reservas, uma violência incontornável.
O que Renata evidencia em sua fala é a estratégia da artista: ao buscar referências em obras de diferentes momentos da história da arte, Kara instaura aquilo que a pesquisadora colombiana María Villa chama de “museu como fórum”, “espaço que acolhe projetos experimentais e os submete ao juízo da sociedade” ou ainda “território de reflexão sobre discursos hegemônicos e onde são possíveis versões discordantes”. Se situamos toda essa produção trazida pela curadora em um contexto pós-colonial, compete ao museu e, consequentemente, à crítica, visibilizarem narrativas não reconhecidas tradicionalmente e remapeá-las de maneira simbólica, caminhando para o que María Villa chamaria de pós-museu.
Se podemos pensar em uma ideia de pós-museu, será que podemos vislumbrar uma pós-crítica? Que elementos da fala de Renata nos habilitam, ao menos, a colocar essa questão, sem qualquer pretensão de chegar a uma conclusão? Usando os termos do pensador indiano Homi Bhabha: se o termo “pós” remete a um além, como a crítica pode atuar em um contexto em que não estamos falando nem de um novo horizonte, nem de um abandono do passado? Que complexidade desse “agora” que simultaneamente é algo “que está por vir” pode ser capturada pelo papel do crítico?
Talvez a ideia de espaço lacunar, elaborada pelo mesmo autor, possa oferecer um caminho: “O que é teoricamente inovador e politicamente crucial”, diz Bhabha, é a necessidade de “elaborar estratégias – singular ou coletiva – que dão início a novos signos de identidade e postos inovadores de colaboração e contestação”. Assim, segundo ele, pode ser possível renegociar interesses e discursos, assim como formas de contato e permeabilidade em relação às imagens. O espaço da lacuna sempre será um lugar de reelaborações, de um jogo entre o que já está dito e o que foi elidido , de reposicionar signos, narrativas, modos de subjetivação. Por ser um espaço do dissenso, de disputas evidenciadas, é um espaço de abertura ao risco.
A arte negra sempre correu riscos a partir do momento em que se coloca em cena, ao abdicar do consenso e assumir uma parte do embate cultural. Validar um vocabulário que manifestamente assuma esse risco e se abra à reinvenção da tradição parece ser, portanto, um papel possível para uma pós-crítica, assim como pensar a possibilidade de todos os corpos – diante de todos os públicos, ocupando todos os espaços – sobretudo os corpos que constituem minorias políticas.