Como construímos nosso patrimônio cultural? Como essas escolhas honram e fazem jus à nossa história? Com essas provocações, o professor Raul Lanari encerra o encontro Transversalidades que aconteceu no dia 16 de junho de 2021, com o tema “Materialidade e imaterialidade da cultura em tempos pandêmicos”, e é dessa forma que inicio este texto, para que tal reflexão caminhe conosco ao longo dele e além.
O encontro foi uma grande aula sobre patrimônio, considerando desde suas origens e definições até chegar nos dias de hoje. Ao longo da atividade, também fomos convocados a pensar sobre como nossas relações com o patrimônio se transformam junto com tantas mudanças e pontos de vista.
Raul dá início à conversa nos lembrando de tudo começa com a prática de se construir edificações monumentais, na maioria das vezes pensadas para estabelecer contato entre forças terrenas e não terrenas, de modo que o tamanho de cada edificação correspondia à dimensão do poder que representava sobre a Terra.
Essa afirmação de uma relação com o divino se converte, entretanto, quando começam a surgir os monumentos – termo que surge entre os romanos. Em vez de remeter a deuses e outros planos, tais construções marcam o poder dos imperadores no presente e são geralmente erguidas depois de conquistas militares. Como Raul Lanari afirma: “são uma espécie de tatuagem no tecido da cidade”.
O conceito de patrimônio no tempo
Na Idade Média, contudo, retornam as relações dos monumentos com o divino, dessa vez a partir da criação de templos religiosos cujos efeitos cerimoniais estão presentes não só na prática desenvolvida em seus interiores, mas também nos elementos ornamentais de suas arquiteturas externas.
Nesse contexto, também podemos chamar atenção para a importância do colecionismo. A partir de então, objetos voltados para a prática dos cultos religiosos, tais como mobiliários e imagens sacralizadas, se tornam alvos do interesse de uma determinada classe social. Geralmente associada às elites eruditas, essa classe dá início à prática colecionista: são os seus gabinetes de curiosidades, precursores dos museus de arte, que formam a concepção de “acervo” que conhecemos hoje.
Referindo-se, mais adiante, ao contexto do Renascimento, Raul nos conta que o interesse das elites intelectuais passa a se voltar pelas ruínas da Antiguidade, marcando o início de uma ideia que se aproxima do que hoje conhecemos como patrimônio da humanidade. O convidado destaca que muitos pensadores vão olhar para esses processos de diferentes maneiras, mas ainda assim podemos ressaltar, sobre esse momento, que a técnica, a estética e a história começam a ser analisadas e valorizadas para além da afirmação de poder que anteriormente atribuía sentido a essas construções.
Caminhando para o período histórico que ficou marcado pela Revolução Francesa, o olhar das elites europeias passa a se voltar às diferenças sociais e a questionamentos quanto à tirania dos monarcas, trazendo uma nova noção de bens públicos. Nesse momento, aliás, o professor faz um adendo: público, naquela época, não era a mesma coisa que povo – público era quem “conseguia exercer a razão e o domínio da palavra em praça pública”. Seja como for, o que é público – mas nem tanto – começa a ser visto como bem simbólico que precisa de instrumentos de preservação, como é o caso das políticas de inventário que visam conter práticas de vandalismo.
Com a Revolução Industrial, vem o desejo de progresso, que por sua vez leva à destruição de ideais antigos – e, com esses ideais, também de suas construções. Esse movimento despertou uma preocupação crescente com a patrimonialização e a preservação de bens culturais, considerando-se, naquele momento, que as histórias contadas por construções e monumentos fazem parte de um todo. Citando o historiador Eric Hobsbawm, Raul nos diz que é a partir desses símbolos que se tem o início de uma abordagem mais ampla sobre oconceito de nação. Antes, segundo ele, essa noção se dava dentro de contextos menores e mais restritos às comunidades.
Partindo de todo esse contexto histórico, Raul Lanari reflete que os processos de patrimonialização dos monumentos trazem consigo uma operação de escolha, pois nem todos entravam nessa classificação. Surgem, assim, entre os múltiplos acadêmicos que participam desse debate, uma série de teorias que vão justificar essas escolhas. Ainda a esse respeito, Raul também desenha o caminho de aprofundamento das categorias e das políticas de patrimônio histórico e artístico que vão ser desenvolvidas em tempos mais recentes, elucidando os conceitos de Patrimônio Cultural – material e imaterial – e de Paisagem Cultural.
Educação para o patrimônio
Enquanto arte educadora que atua em museus há 10 anos, me identifiquei com a seguinte afirmação categórica trazida por Raul Lanari, a partir de um artigo do pesquisador Átila Tolentino: “Toda a noção de patrimônio pressupõe uma educação, então não pode se dizer que essa área do conhecimento foi criada apenas nos anos 1980”. Embora o próprio Raul – e também eu – abomine a noção de “alfabetização cultural”, , muitas práticas relacionadas a esse termo sempre existiram no contexto da visitação de museus, em que tradicionalmente há alguém que domina um pouco mais determinado assunto e outro alguém, interessado em conhecer mais sobre o tema.
Essa educação para o patrimônio está voltada a processos formais e não formais, a práticas que acontecem nas escolas e fora delas, relacionando-se ainda à criatividade, ao inesperado e à abertura para as diferenças. Além disso, muitos processos partem da participação de comunidades interessadas em afirmar seus direitos e incluir suas próprias pautas em discussões patrimoniais. A esse respeito, inclusive o professor frisa que um dos dilemas da atualidade é conseguirmos abandonar uma concepção tutelar da educação patrimonial. Em sua visão, por exemplo, ainda lidamos com a ideia de que vamos ensinar para os mais jovens o que é patrimônio, enquanto, na verdade, as comunidades e seus integrantes sabem muito bem quais são suas referências culturais e que outras referências querem criar em seus espaços de vida.
A questão levantada por Lanari, portanto, está intrinsecamente presente no trabalho de mediação cultural realizado por educadores e educadoras de museus e centros culturais. Como ele mesmo diz, ao longo da atividade, o caráter unilateral da prática educativa deve ser combatido em favor da possibilidade de se aprender com os públicos e trazer suas vivências para dentro das dinâmicas de educação, seja para as artes ou para o patrimônio.
Desafios e oportunidades em tempos pandêmicos
Desde março de 2020 até o momento em que escrevo este relato, estamos imersos em uma crise sanitária que já vitimou mais de 500 mil pessoas no país. Diante desse cenário, a provocação que inicia o texto pode mudar um pouco aqui: como, afinal, podemos manter vivo o nosso patrimônio cultural?
Longe de mim afirmar que a pandemia tenha trazido algo de positivo, mas é fato que, sobretudo agora, a cultura teve – e ainda tem – o grande desafio de se reinventar. Ao longo de sua exposição, o professor fala, por exemplo, sobre o impasse e apreensão vividos por nossos aparelhos culturais, assim como por educadores, educadoras e outros integrantes de uma comunidade social e cultural que testemunha a quebra de ritos estabelecidos, o comprometimento de calendários, a restrição de modos de sociabilidade e também das práticas que estruturam nossos processos educativos.
Considerando tudo isso, é possível perceber um desejo saudosista em relação às mais diversas manifestações culturais profundamente afetadas por esses tempos, constituindo um sinal evidente de que sabemos muito bem, e de modo bastante intuitivo, quais são as nossas referências culturais.
Diante desse impasse, também vemos a própria criatividade enfrentar alguns dilemas: deixar de fazer e criar uma lacuna no tempo, como se a pandemia não tivesse existido, ou incorporar todas essas mudanças na história das nossas manifestações culturais? Sobre isso, os atos de reconhecer e de se apropriar da situação da pandemia não devem ser entendidos como desvirtuações do sentido de nossas manifestações e espaços culturais, mas sim como um desafio a pensar de que formas essa criatividade pode contribuir para os patrimônios já instituídos e talvez até criar novos usos e formas de acesso a eles.
Antes relegadas a um papel secundário, as ferramentas digitais, por exemplo, agora passam a fazer parte desse movimento. Somos convocados, no contexto atual, a revisar nosso entendimento sobre as tecnologias: de que maneiras a internet, o mundo digital e os jovens hiperconectados podem ajudar a difundir as tecnologias, os saberes e os fazeres tradicionais, cultivados há séculos por nossas mestras e mestres de gerações anteriores? Em meio a um contexto de inúmeras perdas e desafios, o lugar do conhecimento e do encontro se amplia, e a comunidade se educa em um movimento interno que pode – por que não? – se externalizar.
Frente a esse complexo contexto social, Raul Lanari finaliza o encontro enfatizando o quanto o patrimônio é construído a partir das nossas visões sobre o que é contemporâneo, deixando de lado uma visão que restringe a ideia de patrimônio apenas aos legados do passado. Olhar para o passado, em sua perspectiva, nos serve para identificar valores e elementos culturais que, no presente, nos permitam construir uma sociedade com base no respeito às diferenças e às dinâmicas históricas. Ou ainda, copiando uma frase do historiador francês Dominique Poulot trazida pelo professor: “a história do patrimônio é amplamente a história de como uma sociedade constrói seu patrimônio”.