Não é algo incomum vermos profissionais de outras áreas dialogando com a arte contemporânea. Em suas mais diversas linguagens, a arte, entendida como largo campo do fazer, amplia horizontes e frequentemente captura diversos atores para uma apreensão poética do mundo, possibilitando uma fruição mais estreita da própria vida.
Conexões como essas começam a surgir na arte brasileira já na década de 1960. Dez anos antes disso, entretanto, o artista Abraham Palatnik foi um dos precursores a transbordar os limites impostos por representações clássicas como a pintura e a escultura. A partir de uma provocação de seu amigo e crítico de arte Mário Pedrosa, deu-se o pontapé revolucionário: por que não absorver em sua produção artística os conhecimentos de mecânica e física presentes em seus estudos do ensino técnico? É aí que começa sua jornada de investigação sensível entre cores e engrenagens. Para nos ajudar a dissecar obras presentes na exposição “Abraham Palatnik: A Reinvenção da Pintura”, o convidado da edição de março de 2021 do Com a Palavra… é Yurij Castelfranchi, comunicador científico e doutor em sociologia da ciência e da tecnologia.
O primeiro conjunto de obras a serem analisadas são os “Aparelhos Cinecromáticos”, traduzidos por Yurij como “máquinas de cores em movimento” – “cine” vem do grego kinema (movimento) e croma, do grego khrõma (cor). Os aparelhos são constituídos por lâmpadas coloridas e hastes presas à formas orgânicas, que se movimentam lentamente dentro de uma estrutura de madeira com visor translúcido. O cientista compara a criação de Palatnik às nossas atuais telas de Led, o que provoca uma confusão entre analógico e digital, mesmo que o primeiro aparelho cinecromático tenha sido desenvolvido pelo artista para a primeira Bienal de SP ainda em 1951, quando sequer a televisão a cores era transmitida no Brasil.
Para Yurij, Palatnik intui que o lugar da arte é na “beira entre a ordem e o caos”, na “busca por equilíbrio em meio ao desequilíbrio do universo”. A esse respeito, na vídeo-arte documental “Disciplina do Caos”, de Luis Felipe Sá, o próprio artista se descreve como alguém que busca reorganizar o caos a partir de elementos simples da representação visual, que são capazes de se transformar, atingindo nossos sentidos e nos convocando a um momento de contemplação pura.
Palatnik imita a vida ao trazer para os “Aparelhos Cinecromáticos” ou para seus “Objetos Cinéticos” – outra série de trabalhos de grande destaque em sua carreira – um fluxo permanente, um eterno vir a ser em movimentos delicados e ininterruptos. Esse fluxo atua como a lei geral do universo, que cria, dissolve e transforma todas as realidades existentes, inclusive o pensamento de quem se faz presente perante a obra de arte, numa atividade meditativa.
Aproximações entre arte, ciência e movimento
A pesquisa e seus processos são outras características que aproximam ciência e arte, entendidas por Yurij como duas flores de uma mesma planta. Ele destaca, por exemplo, que pouco antes de Palatnik iniciar seus estudos e projetos com lâmpadas na arte cinética, Einstein desenhava a teoria da relatividade, nos ajudando a entender o comportamento da luz e também a definir o pano de fundo onde todos os eventos do cosmos se desenrolam.
Einstein reinventou a física ao nos dizer que o espaço e o tempo têm de ser relativos, ao passo que Palatnik descobre que como artista pode maquinar o mundo e estas suas duas coordenadas. Ele reinventou sua pintura evidenciando o “sentir o espaço, no tempo” – e vice-versa. Para Yurij, os quadros de Palatnik ansiavam por sair da tela, rejeitando a condição de figurar somente em duas dimensões. O movimento, então, se faz presente à nossa frente e também dentro de nós, quando o acompanhamos com os olhos e o pensamento.
Para o cientista, mesmo os trabalhos estáticos de Palatnik, como aqueles que integram a “Série W”, nos obrigam a mover nossos próprios corpos, como se o movimento se comunicasse com “a alma da gente”, em nossa inquietude. Yurij defende que a ciência também tem caminhado de uma abordagem mais analítica em direção a uma observação maior de aspectos relacionais e da compreensão de interações para além de uma ciência que lida com conhecimentos encaixotados em partes.
Yurij traz ainda reflexões sobre arte e tecnologia. Reconhecida como um elemento absurdamente presente em nossas vidas, a tecnologia ainda estimula em muitas pessoas relações que partem de sentimentos como atração ou repulsa. Para além disso, Palatnik explora em seu fazer técnicas que também provocam algo em cada um de nós, nos devolvendo essa energia a seu modo.
Na produção do artista, a obra de arte é viva ao incorporar nossas incontáveis maneiras de ver o mundo e sutilmente nos fazer lançar novos olhares para as singelezas cotidianas. Em muitos casos, as percepções despertadas pelas cores em movimento fazem com que as obras de Palatnik funcionem como verdadeiros portais para memórias de afeto e experiências ao mesmo tempo científicas e sensoriais, como contemplar as nuvens ou respirar frente à luz de uma vela.