O que é um segredo? Alguém já te contou um segredo? E se esse segredo te levasse a encontros inesperados com a sua própria origem e ancestralidade? Convidada a conduzir um encontro do curso Processos Compartilhados dentro do Programa CCBB Educativo – Arte & Educação, a artista visual Aline Motta tem passado por essa experiência desde que foi escolhida por sua avó materna, Doralice, para desvendar um segredo que a ancestral carregava consigo já há muitas décadas. Por certa ironia, entretanto, o segredo só foi revelado à neta muito pouco tempo antes do falecimento da matriarca.
A partir desse segredo, que ecoou nos ouvidos da artista, teve início uma busca pelo desconhecido. Quem eu era? Quem eu sou? Para onde vou? Essas foram algumas das perguntas que me passaram pela cabeça ao começar a entender os passos que ela tomou para si durante uma imensa viagem por sua ancestralidade.
A busca pelo desconhecido pode muitas vezes ser árdua, cansativa, mas também é um convite a desbravar histórias não contadas e, de alguma forma, silenciadas. Ao ser premiada por um edital de artes visuais, a artista pôde efetivamente iniciar sua jornada: um projeto em busca de suas origens que logo se tornaria conhecido como “Pontes sobre Abismos”.
Motivada a desvendar o segredo contado pela avó, Aline Motta ampliou essa busca, dividindo-a em quatro viagens. Estruturadas como residências artísticas, cada uma com o objetivo de investigar um de seus antepassados, ou ainda um conjunto de antepassados.
Viagens para o descobr(ir)
Aline conta que a primeira viagem foi denominada “O Pai”. Ao lado do pai, Everaldo, um homem branco de 77 anos, a artista partiu rumo a Itaperuna, na região Noroeste do Rio de Janeiro, onde ambos se dedicaram a pesquisar documentos em cartórios, paróquias e na sede do Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (Iphan).
A segunda viagem, “A Mãe”, teve como destino a cidade de Vassouras, no Vale do Paraíba, região de onde veio a família da mãe de Aline, mulher negra falecida em 2011. Percebo que neste processo de se entender e descobrir nossas origens, somos a todo o momento atravessados por ocorridos até então apagados de nossas histórias.
A artista ressaltou aos participantes vir de uma família em que o pai é branco, e a mãe, uma mulher negra. “Ninguém ficou mais branco no Brasil por amor”, afirmou a convidada, fazendo entender que sua ancestralidade, assim como a de todos nós, vem de um período histórico dolorido para o povo negro, pobre e escravizado – fato que torna sua busca ainda mais forte e significativa.
Cruzando fronteiras
A terceira viagem, intitulada “O Outro”, levou a artista até Portugal, onde ela pôde colher mais informações sobre antepassados paternos e maternos, chegando, inclusive, a encontrar ligações com a “família real brasileira”. Dentre as reflexões surgidas ao longo de sua apresentação, me peguei pensando na construção da minha própria família, assim como nas famílias dos meus vizinhos, nas relações que se formam em torno de vínculos familiares, e ainda sobre quais são as linhas que orientam esses processos.
Por fim, e certamente não menos importante, Aline Motta nos contou sobre a quarta viagem. Nomeada “Origem”, a derradeira jornada teve como destino Serra Leoa, em África – um território marcado por dez anos de guerra civil e dois anos de epidemias de ebola. Em Bo, segunda maior cidade de Serra Leoa, Aline conta ter apresentado a foto de sua bisavó, Mariana, a um chefe político local. Ao observar a imagem de Mariana, o mesmo chefe identificou semelhanças com a fisionomia de sua própria mãe. A partir dessa semelhança, Aline conta ter escutado dele a seguinte frase: “Você é uma de nós, bem vinda de volta”.
Em meio a tantos encontros e atravessamentos vividos nos caminhos que Aline traça ao percorrer também sentimentos e apontamentos de sua origem, o que se tem como possível síntese é a história sua bisavó Mariana: uma menina negra, nascida em Vassouras no ano de 1888, que sai do meio rural e vai para a cidade, trabalhar na casa de uma família branca, para cuidar de um menino.
“Eu nunca conheci o meu pai, e ele nunca me reconheceu como filha”: foi esse o segredo revelado à artista por sua avó, Doralice, já aos 99 anos de idade. A artista entende, então, que sua bisavó, Mariana, havia engravidado daquele menino. E agora Aline tem nas mãos o nome do menino – o nome de seu bisavô, até então desconhecido.
Primeiros caminhos
Ela conta ter iniciado a pesquisa sobre a própria ancestralidade muito antes de ser premiada e poder realizar “Pontes sobre Abismos”. Ainda em 2014, logo após a confissão da avó, a artista já havia encontrado alguns resultados ao procurar o recém-revelado nome do bisavô em arquivos públicos e sites de busca. Já naquele momento, a busca trouxe consigo revelaçõe sobres relações de abuso de poder entre patrões e empregados – relações recorrentes e presentes na história do Brasil, sobretudo durante o período histórico vivenciado por sua bisavó.
A partir da arte, Aline Motta constrói poéticas e traça perspectivas que dão voz e lugar a aspectos pouco conhecidos da história. Aspectos que podem, então, ser lidos e escutados a partir do seu trabalho.
Assim como Aline, ao se apresentar como uma mulher negra em constante processo de descoberta, também me coloco nesse lugar. No lugar de uma mulher negra em um processo contínuo de aprendizado, de descobertas sobre os meus antepassados e de ocupação desse lugar social em meio a apontamentos e questionamentos que nos fazem problematizar nossas próprias identidades.
A artista nos convoca, então, a questionar também nossas origens. Quem são nossos antepassados? Como e onde viviam? Esses são questionamentos pertinentes quando se escolhe estudar sua própria história a partir de um segredo. Pensar em histórias e memórias é pensar também na construção de uma sociedade em constante transformação e autoconhecimento, motivada por anseios e desejos que nos atravessam cotidianamente.