Eu me lembro de que ainda na infância já experimentava um grande interesse pelo corpo, e logo suas múltiplas formas de transformar o som em movimento tomaram conta de meus interesses. Recordo das sensações despertadas por cada instrumento e da vontade forte de me movimentar, acompanhando e sendo levado pelo ritmo acelerado das baterias das escolas de samba do Rio de Janeiro, que eu via pela televisão.
Naquele momento, eu ambicionava traduzir a música do mesmo modo que aqueles corpos: queria me mover de modo a colocar para fora toda a paixão que as harmonias me faziam sentir. Assim, então, me descobri bailante no samba. Depois que aprendi a sambar, fui caminhando por outros ritmos do Brasil, sempre na busca de dançar e dançar. Foi assim até que cresci, e a vida adulta me fez esquecer dessa paixão.
Ao ver e rever o Múltiplo Ancestral conduzido pelos artistas Fernando Leme e Guilherme Fogagnoli, acabei revivendo não somente a vontade de dançar, como também me vi ainda mais curioso pelas diferentes formas de sentir e mover o corpo que se desdobram pelo nosso país. Há tanto a ser visto, ouvido e sentido, há tantas músicas e ritmos a serem transcritos pelos corpos, que minha playlist de músicas diárias foi invadida por novos sambas, forrós, maracatus e frevos. Ônibus, vagões de metrô e filas de banco se tornaram locais de ensaio para gingados tímidos que, mesmo em público, teimavam em aparecer.
A democrática arte do gingar
A música criada por Fernando Leme traz uma intensa investigação do corpo em dança, ao mesmo tempo em que pensa o movimento que se expande por diferentes partes dos nossos corpos. “Olha o pé, olha o roda, olha o chão”: expandindo-se tanto pelo ambiente, quanto pelo jogo com outros corpos, fica claro que dançar vai além de reproduzir passos pré-definidos. Dançar é sentir o som vivo dentro de si e externalizá-lo para o mundo, para o grupo, para o espaço. Cantado em versos simples e de cadência alinhada, fica claro o jogo de respostas corporais e contatos provocados pela música “Dançar, dançar”, ao longo da qual somos levados a se mover mesmo sem perceber.
E o mais lindo de toda essa imersão é que a dança, na sua humilde manjedoura de arte criada pelo e para o povo, é democrática com seus bailantes. No decorrer do vídeo, o dançarino profissional vale tanto quanto os que estão aprendendo requebrar, e o consentimento para adentrar o “palco” é direito de ambos. Independente de formações e estudos, incorporando a diversidade de corpos e classes sociais, sempre há um palco a ser ocupado: seja entre amigos, em um desfile de rua no Carnaval, seja na intimidade da própria casa ou ainda em uma roda de samba nos almoços familiares.
Corpos em sobreposição
Para evidenciar a diversidade e a pluralidade de ritmos presentes no Brasil, Guilherme Fogagnoli complementa letra e música com um vídeo que sobrepõe diferentes ritmos, corpos e manifestações culturais. A partir da reciclagem de mídias, o artista captura imagens e materiais produzidos por outros autores. Em “Dançar, dançar”, esses fragmentos são ressignificados de modo a deixar claro que, apesar de distâncias físicas e culturais entre os ritmos brasileiros, ainda assim existe uma conexão entre eles. Seja no vídeo ou em nossa história, os mesmos planos de fundo servem a diferentes manifestações – e isso fica bastante evidente nesse trabalho.
Além de evidenciar redes de contato e influência entre os ritmos brasileiros, a técnica escolhida pelo artista pode servir como incentivo a um uso de conteúdos audiovisuais já presentes no mundo, dispensando a produção de novos produtos e imagens.
Pelo que requebro?
Ao começar essa escrita e rever o vídeo para rememorar o que aqui queria relatar, me lembrei de que é importante entender que a dança, mesmo sendo uma arte democrática, não está livre de carregar consigo marcas de preconceitos do passado. Assim como acontece em outras linguagens artísticas, ela é dançada em uma estrutura social, cultural e política muitas vezes é excludente, que ainda hoje utiliza símbolos históricos como demarcações de territórios físicos e simbólicos.
A dança deve se manter, então, em constante atualização simbólica e cultural: deve ser contemporânea e corresponder aos ideais dos próprios tempos. Deve ser revisitada sempre que necessário, para que assim se mantenha democrática, respeitosa e divertida para todos que a praticam – e é por isso que eu requebro.