No ano de 1994, Frank Adeodato nasceu em Formigas, povoado do município de Viçosa do Ceará, por sua vez situado na fronteira entre os estados de Ceará e Piauí. Há cinco anos, Frank vive em Planaltina, região administrativa do Distrito Federal, e trabalha no CCBB DF como atendente cultural. Suas atribuições são, dentre outras, zelar pelo espaço e pelas obras, verificar ingressos, dar instruções para a visitação e orientar os visitantes sobre o comportamento indicado na entrada, caso necessário. O uniforme – terno preto, camisa branca e gravata amarela – é compartilhado por seus colegas de função, mas nem todos se distinguem como ele. Muita simpatia, uma simplicidade evidentemente nordestina, sorriso fácil e um distinto bigode de pontas enroladas são traços marcantes de sua presença.
Embora o senso comum leia sua presença como a de um “mero segurança”, ao longo de todo o seu período de trabalho, Frank está estrategicamente imerso nas exposições que acontecem no CCBB DF. Além de ser testemunha ocular – e auditiva – das diversas percepções dos visitantes, alguns costumam lhe fazer perguntas sobre as obras – não apenas para ele, mas para todos os seus colegas. Por causa dessa imersão, cada um deles tem suas próprias experiências estéticas, frequentemente ultrapassando os recorrentes “gosto”,”não gosto”, “entendi” ou ‘não entendi”.A partir dessas e de outras razões, a escolha de Frank como convidado e anfitrião da atividade Com a Palavra realizada durante a exposição Vaivém, que tem como importantes eixos as redes de dormir, os povos indígenas e afro brasileiros e o Nordeste do país, trouxe ao público a convergência e o transbordamento de funções, atribuições, papéis sociais, desejos e forças atuantes em instituições culturais como o CCBB.
Começamos a visita diante da pintura Yube Nawa Aibu (Mulher Jibóia Encantada), feita pelo Coletivo Mahku, de artistas contemporâneos Huni Kuin. Sob o olhar de Frank, essa pintura se apresenta como um grande e generoso convite dos Huni Kuin para que, como eles, possamos nos apropriar de nossas histórias ancestrais. O convidado também citou a força feminina como elemento importante nesse processo: filho de uma mulher indígena e um homem de ascendência italiana, Frank conduziu a visita como uma partilha de vida, memória, identidade e brasilidades.
Refletindo sobre a força feminina a partir da figura da mulher jibóia, Frank afirmou com orgulho sua ascendência indígena pelo lado materno. Embora pouco saiba sobre essa origem devido ao genocídio dos povos indígenas do Nordeste, ao silenciamento das mulheres e ao apagamento das culturas não-cristãs, o convidado se apropriou de sua ancestralidade de modo afetivo, por meio de memórias pessoais. Na sequência, ele nos conduziu às serigrafias de Gustavo Caboco, artista que tem em comum com ele uma relação profunda com a mãe indígena. Diante desses trabalhos, Frank escolheu falar sobre a bananeira. “Por mais que você seja plantado em outro lugar, o DNA é o mesmo da bananeira-mãe”, disse o convidado, valendo-se de uma imagem muito pedagógica para sua abordagem afetiva da ancestralidade.
O tucum e a rede
A força feminina também foi posta em evidência ao assistirmos ao vídeo realizado por Arissana Pataxó, obra que despertou memórias sobre o que, no que Frank testemunhou em sua infância, é passado de mãe para filha: como acontece em vários povos originários, o fazer das redes de dormir é um dos ofícios femininos. Na perspectiva do convidado, esse fazer constitui um legado, uma herança e um vínculo. A partir disso, veio também a memória de uma distinção muito específica entre o tucum e as redes. Enquanto o tucum remete à rede feita com material de mesmo nome, usada para descansos e cochilos, as redes feitas de tecido de algodão eram utilizadas para dormir. Era no tucum que o pai de Frank se sentava, tirava as botas, colocava o facão no chão e descansava o corpo, na urgência do cansaço de um dia inteiro na lida da roça. O convidado também falou sobre como, na medida em que o tempo passa e persiste a ideia moderna, urbana e capitalista de progresso, tais experiências e saberes se tornam ameaçados de extinção, assim como as pessoas indígenas e os demais corpos e identidades marginalizados.
Para ilustrar sua fala, Frank nos conduziu a redes de autorias diversas, e entre elas apresentava-se uma feita de tucum, à maneira das redes que via na sua infância em Formigas. Perto dessas obras, encontramos também revistas do Zé Carioca, que serviram como gatilho para que Frank falasse sobre o estereótipo da preguiça. “A história relaciona a gente (o povo brasileiro) com a preguiça, mesmo não sendo isso, porque foram os indígenas e os negros que trabalharam. Os povos brancos é que se aproveitaram desse trabalho escravo.”, disse.
Ainda sobre os estereótipos de brasilidade, em sua visão mantidos tanto por discursos estrangeiros quanto pelos próprios brasileiros, Frank Adeodato nos apresentou a algumas esculturas de Mestre Vitalino em que figuravam enterros na rede. Ao mesmo tempo em que estão presentes em expressões específicas e alegres da infância cabocla nordestina, as redes compõem também o drama da migração, da seca e da morte. A respeito dessa ambiguidade, Frank nos mostrou um outro lado das redes de dormir ao trazê-la como instrumento de transporte de pessoas doentes e mortas pelas “varedas”, ou caminhos, do seu lugar de origem.
A pintura da artista Duhigô, “Rede Macaco”, foi pano de fundo para que Frank refletisse sobre aspectos da maternidade e sobre alguns objetos do cotidiano presentes em sua infância. A pintura apresenta os cuidados tomados pelos Tukano com as mães e os recém-nascidos, e Frank nos contou que as mulheres do povoado onde nasceu costumavam sentar nas cinzas para ajudar na cicatrização pós-parto. Frank falou em seguida sobre o pé de coité (ou cabaceira), que é uma árvore originária da América Central, de grande ocorrência na Amazônia e no Nordeste brasileiros. Vale ressaltar que a própria Duhigô viu sua mãe dar à luz ao pé de uma cabaceira, o que dá uma dimensão simbólica e potente à árvore. De seus frutos são feitas as cuias. O convidado falou ainda sobre como fazer uma cuia, lembrando-nos de seus usos para pegar água de cacimba, armazenar farinha e alimentar-se, entre outros.
Resultado de uma expedição à Amazônia no século XIX, as fotografias de Albert Frisch, chamaram a atenção do convidado pela semelhança com as cabanas feitas na roça, usadas para o abrigo dos trabalhadores durante os intervalos para almoçar. As roupas das pessoas nas fotos, por sua vez, trouxeram-lhe a lembrança do reaproveitamento das coisas, parte importante da luta pela sobrevivência nos interiores do Brasil. Conforme nos lembra o convidado, muitas pessoas costumavam usar sacas de mantimentos para confeccionar roupas, assim como para produzir redes para descanso, substituindo o tucum.
Memórias de capemba
A capemba é uma palha que se desprende do pé de babaçu, do mangará de algumas bananeiras e de coqueiros em geral. Muito utilizadas por crianças do interior do Brasil à semelhança de carrinhos de rolimã ou pranchas para deslizarem por declives, as capembas foram lembradas por Frank ao se deparar com a obra de Francisco Klinger Carvalho. Apelidado justamente de capemba por nosso convidado, o trabalho corresponde a uma canoa de madeira disposta na vertical, dentro da qual há uma rede branca cujos punhos são afixados nas extremidades da canoa. Envolvendo os dois objetos, um cipó muito comprido sela toda a estrutura.
Na visão do convidado, essa obra tem em sua materialidade três elementos muito simbólicos: a canoa, o cipó e a rede. Para ele, enquanto a canoa dá forma ao objeto, fazendo lembrar a capemba e também o formato da rede aberta; o cipó remete à natureza, e a rede, à história do Brasil caboclo, negro, indígena e feminino. Frank entende a obra como uma denúncia sobre o roubo das histórias não-oficiais e os diversos grupos sociais marginalizados em território brasileiro.
De igual modo, ao ver, mais adiante, o vazio da rede criada pela artista Adriana Aranha, Frank nos convida a refletir sobre o apagamento de identidades e o sequestro de culturas como mecanismos relacionados a uma deterioração de referências identitárias que, caso tivessem sido respeitadas, trariam mais dignidade e sabedoria à diversidade de modos de vida que efetivamente constituem o Brasil.
Frank Adeodato é um brasileiro que, à revelia de apagamentos e estigmas, sente-se privilegiado por suas origens. Mesmo não sendo precisas, tais referências são vividas por ele de modo afetivo, fazendo com que cada detalhe compartilhado durante o Com a Palavra se constitui como legado, como testemunho de formas de existir, resistir e efetivamente ser brasileiro. Para o convidado, cada passo dado por nós é seguido de todos os passos dados por nossos antepassados, sejam eles brancos, negros ou indígenas. Mesmo que as histórias de muitos tenham sido roubadas, assim como as redes, os corpos, as liberdades e as culturas, Frank acredita que a consciência dos fazeres e saberes dos que vieram antes de nós reafirma a memória como nossa mais importante ferramenta de resistência e ressignificação ante os desafios da contemporaneidade.