Para mim, que tive e tenho uma vida atravessada por educadores, é tão difícil não ser eu mesma uma educadora quanto o é encarar o fato de, quase que inescapavelmente, sê-lo.
Neta e filha de professores, fui alfabetizada em casa, pela minha avó. Décadas depois, nessas voltas da vida, durante a pandemia me vi alfabetizadora: durante dois anos, enquanto me deliciava e aprendia ao mediar a educação formal do meu filho, fui me reconectando cotidianamente com minha formação como educadora.
Entre 2003 e 2008, na Universidade Federal de Pernambuco (UFPE), cursei a Graduação em Licenciatura em Educação Artística com habilitação em Artes Plásticas (assim mesmo, com maiúsculas)
Eu provavelmente não teria escolhido uma licenciatura caso houvesse um bacharelado em artes, história da arte ou algo do gênero disponível em Recife naquele momento. Como não havia outra opção, vivenciei uma formação artística compartilhada entre disciplinas da pedagogia e das artes visuais, do teatro e da música.
Desde cedo interessada na crítica e na teoria da arte, fui desenhando minha experiência acadêmica para atender a esses desejos ao passo que, dentro e fora da universidade, em cursos e estágios, experimentei também o campo da arte educação (naquela época, passávamos horas discutindo o uso da barra, do hífen ou do espaço como forma de estabelecimento de relação entre esses territórios, a arte e a educação).
Recife – e, mais amplamente, Pernambuco – tem uma frondosa tradição educadora. Para além de manter instituições já centenárias de ensino e de ter sido o berço de um pensador e militante da estatura de Paulo Freire, também no campo das artes, historicamente a cidade tem sido um território de convergência social e política entre a dimensão experimental e o caráter perscrutador tanto da arte quanto da educação.
Fundada em 1953 por Noêmia Varela e Augusto Rodrigues e, apesar de ao menos desde a década de 1990 seguir existindo-resistindo com muita dificuldade, enquanto eu cursava a Licenciatura em Educação Artística, a Escolinha de Artes do Recife era, decerto, uma das principais referências desse entrecruzamento.
O protagonismo da Escolinha – a segunda do movimento das Escolinhas de Arte do Brasil, fundada logo após a unidade do Rio de Janeiro, criada em 1948 pelo pernambucano Augusto Rodrigues – era constantemente evocado pelas memórias dos artistas da cidade. Lembro-me das histórias que Gil Vicente me contava a respeito, narrando como a liberdade que buscava como artista havia sido por ele experimentada na infância, como aluno da Escolinha.
Não à toa, Anísio Teixeira afirmou que:
Não é somente a escolinha de arte uma inovação pedagógica. É também inovação no próprio conceito de arte, pois esta já não é a atividade especial de criaturas excepcionais, miraculosamente dotadas de poder de ‘redescobrir’ a arte no emaranhado organizatório da vida racional, homogênea e mecânica, passiva e obrigatória da era de Gutemberg, mas atividade inerente ao senso humano da vida, que, felizmente, ainda se pode encontrar nas crianças que não foram completamente deformadas pelos condicionamentos inevitáveis da instrução morta e fragmentada das escolas convencionais.
Política e metodologicamente, a instituição era referência para vários de meus professores – Sebastião Pedrosa, Ana Lisboa, Rosa Vasconcelos e Fernando Azevedo, dentre outros – e, principalmente, ocupava um lugar central nas reflexões produzidas por Ana Mae Barbosa, com a qual tive a oportunidade de conviver brevemente quando, no começo dos anos 2000, junto a Rejane Coutinho e Heloísa Margarido, ela ministrou alguns módulos de um curso de arte educação em Recife.
Naquele momento, Ana Mae trabalhava com a ideia de “mediação”. A partir da arte, da cultura e de práticas sociais, defendia a prática do educador como um mediador, um “organizador, estimulador, questionador, aglutinador. O professor mediador é tudo isso”.
Aluna de Noêmia Varela e de Paulo Freire (para o qual, aliás, “ninguém educa ninguém, ninguém educa a si mesmo, os homens se educam entre si, mediatizados pelo mundo”), professora da Escolinha de Arte do Recife entre as décadas de 1950 e 1960 – e, posteriormente, ela mesma fundadora da Escolinha de Arte de Brasília –, para mim, então uma jovem estudante de artes, ouvir Barbosa não sobre sua “abordagem triangular”, mas sobre o papel mediador dos educadores e educadoras de instituições de arte foi, decerto, fundamental.
Como tantos outros colegas, naquele momento eu vivenciava a oportunidade de realizar estágios em museus e, como “mediadora” – assim se convencionava chamar os educadores de instituições culturais de Recife –, me defrontava com as ambivalências dos sentidos e das implicações da prática artística, os quais desde aquela época se tornariam matéria e chão para o meu trabalho como curadora e educadora.
Em diálogo com Ana Mae, a partir do conceito de mediação, discutíamos sobre posições infixas na significação, na interpretação, na comunicação e na valoração da arte e de outras práticas culturais, exercitando a consciência contextual e aprendendo a tirar partido, durante processos educativos, das singularidades subjetivas, culturais e sociais dos indivíduos implicados num espaço-tempo comum – quase sempre contingente e, por isso, efêmero.
Contudo, a despeito do grande interesse que a ideia de mediação passava a me despertar, outra parte de minha formação na Licenciatura me frustrava.
Muitas vezes evocando a própria Ana Mae Barbosa, meus colegas e eu tivemos aulas assustadoramente prescritivas quanto às formas de se educar com, através e para a arte: situações em que a complexidade do debate metodológico no âmbito da pedagogia era resumido a espécies de protocolos de “como fazer” arte com crianças.
Pedagogos com pouca experiência artística ou criadora, ao elaborar seus cursos para as várias licenciaturas, muitas vezes reincidiam nesse horizonte normativo das relações entre arte e educação, instrumentalizando a primeira como uma espécie de técnica visual ou expressiva para os – sem dúvida bem-intencionados – interesses psicossociais da segunda.
Se, por um lado, tais ensinamentos de uma versão prescritiva da arte educação poderiam ter sua validade parcialmente experimentada na sala de aula, quando defrontada com o cotidiano da educação em museus e com o trabalho de mediação cultural então de nós demandado como estagiários de espaços como o Instituto Ricardo Brennand, o Instituto de Arte Contemporânea da UFPE, o Museu de Arte Moderna Aloísio Magalhães e a Fundação Joaquim Nabuco, esse modelo se demonstrava inócuo e amplamente restritivo.
Ainda que a função de mediadora contemplasse visitas educativas com instituições de ensino e mesmo com turmas da educação infantil – público para o qual se destinava a maioria dos aprendizados em arte educação da Licenciatura em Educação Artística –, grande parte do nosso trabalho estava voltado a uma diversidade maior de faixas etárias e posições sociais. A ênfase num “fazer” significativamente mecanizado e comumente infantilizado de parte de minha formação mostrava seus limites justamente dentro do museu, no contexto das instituições culturais.
Nesses espaços, naquele começo dos anos 2000, em Recife, também tínhamos a rica oportunidade de conviver com estudantes de outras graduações, como história, comunicação, arquitetura, letras, filosofia, ciências sociais. Com repertórios teóricos bastante diversos para mediar as exposições e demais atividades institucionais, em sua maioria, esses estudantes tinham pouca (ou mesmo nenhuma) relação com perspectivas de arte e educação calcadas no fazer, na ação e em processos de criação: algo que experimentávamos no âmbito dos ateliês e oficinas da Licenciatura. Isso porque, na graduação em Educação Artística da UFPE, em que pesem as frustrações com a instrumentalização de certa pedagogia voltada à arte, ao nos lançarmos em processos de criação com professores que eram também artistas, pudemos vivenciar a dimensão educadora que têm não as metodologias de ensino da arte, mas a própria criação como processo de aprendizagem.
Apostávamos na inteligência das matérias e das formas, na agência do tempo, nas reverberações que são próprias ao espaço, na potência do encontro com o outro, nas ações dos acidentes e na força daquilo que, advindo de outras racionalidades, pode parecer até mesmo arbitrário.
Lembro-me de ler, nessa direção, os escritos de Fayga Ostrower, para a qual “toda criação corresponde essencialmente a processos de transformação”, afirmação que depois teria seu sentido ampliado quando de meu encontro com o statement de Hélio Oiticica de que “criar não é a tarefa do artista. Sua tarefa é mudar o valor das coisas”.
Criando e “praticando arte” sem a ambição de ensiná-la ou de institucionalizá-la desde a condição do “artista”, na graduação em Educação Artística, para além de um “fazer” mecanicista, com professores como Ana Lisboa ou Sebastião Pedrosa, também mergulhamos na potência do criar.
Contudo, em nossa prática como mediadores, dada a convergência entre nossa frustração pedagógico-metodológica na Licenciatura em Educação Artística e a multiplicidade epistemológica do ambiente dos estágios nas instituições culturais de Recife, de modo geral, vivenciamos uma abordagem amplamente historicista e conceitual da arte.
Dessa forma, em muitas das visitas educativas que realizávamos, propúnhamos diálogos em torno de “contextos”, “conceitos”, “palavras-chaves”, “perguntas disparadoras” e outras estratégias eminentemente discursivas que, destinadas a públicos bastante diversos, eram também marcadamente distintas da tradição educadora de experiências como a da Escolinha de Arte do Recife ou da aposta na criação como processo formativo.
Ao que me parece, o estabelecimento e o fortalecimento da curadoria naquela primeira década do século XXI, em Recife, também corroboraram tal direção das afluências entre arte e educação. Em sua maioria trabalhando nas exposições, os mediadores tinham sua prática grandemente orientada pela perspectiva curatorial (não era, aliás, incomum ver curadores tratando ações educativas como meros “apêndices”).
Posto que havia, da parte de vários mediadores, um declarado interesse em conhecer e se dedicar a atividades não só de curadoria, como também de pesquisa, gestão, museologia e outras atribuições institucionais, creio ser possível afirmar que, partindo da observação da minha experiência – que, todavia, talvez possa ser estendida a outras colegas da Graduação em Licenciatura em Educação Artística/Artes Plásticas que não seguiram uma trajetória de trabalho em escolas ou na educação formal –, grande parte de nossas referências e nossos aprendizados pedagógicos no campo da arte educação seguiram (ou seguem) em estado de dormência.
Ao longo das últimas décadas, o surgimento de mais instituições e o fortalecimento das já existentes num processo que coincide com a afirmação da prática curatorial no Brasil parecem ter enfatizado a força da educação em museus em sua abordagem eminentemente discursiva, com espaços-tempos de escuta, diálogo, reflexão.
Sou testemunha da potência desse tipo de prática e, alinhada a seus horizontes críticos, éticos e políticos, integrei alguns projetos curatoriais que, inclusive, tomavam partido dessa abordagem educativa, como a mostra contidonãocontido – cocurada junto a Maria do Carmo Nino e aos mediadores do EducAtivo MAMAM (Museu de Arte Moderna Aloísio Magalhães, 2010) – ou Dja Guata Porã: Rio de Janeiro indígena (Museu de Arte do Rio, MAR, 2017), cocurada por Sandra Benites, José Ribamar Bessa e Pablo Lafuente.
Nessas ocasiões, por exemplo, pude exercitar a dimensão mediadora (e, portanto, também educativa) da curadoria, desdobrando reflexões que, ainda que tenham sido nutridas por institucionalidades como a Escola do Olhar (MAR), remontavam, por fim, às minhas vivências de quinze anos antes.
Contudo, entre os aprendizados com Ana Mae Barbosa, meus tempos como mediadora em instituições de Recife e minha experiência de mediação no âmbito da curadoria – noutros termos, a prática curatorial como mediação (o que definitivamente não se aplica a toda e qualquer curadoria) – somava-se, a meu ver, um elemento de grande relevância ética e política: o conflito.
Não sei se por imaturidade minha, se porque não prestei atenção ou se de fato porque não era o foco daqueles diálogos, não me recordo de, com Barbosa, Coutinho e Margarido, falarmos abertamente sobre a mediação não só “de conflitos”, mas principalmente de uma mediação que emerge no conflito.
Ainda que a própria Ana Mae seja uma pessoa claramente combativa nos debates sobre arte, educação e política, provavelmente dado o próprio modelo de gestão do Centro Cultural Banco do Brasil, instituição em torno da qual o curso se centrava, as discussões que então tivemos ao longo de seus módulos focavam-se na relação mediadora entre educadores e públicos, e não na mediação como modo de se praticar, disputar e construir… a própria instituição.
Minha trajetória como curadora foi, por outro lado, me ensinando não só a imensidão, como também a potência que os conflitos – em suas coreografias de dissensos e antagonismos – podem ter não apenas nos processos educativos, como também curatoriais e institucionais que se desejem críticos.
Dentre os muitos que pude experimentar, um sempre me chamava a atenção: o conflito entre curadoria e educação e, mais especificamente, certo preconceito curatorial com processos pedagógicos calcados no fazer, na radical aposta na racionalidade que é própria da criação e sua força (auto)transformadora.
Sob a égide de uma institucionalidade historicamente nova no Brasil – em sua maioria financiada por grandes empresas através dos mecanismos de renúncia ou isenção fiscal – e embalados pelo sonho econômico e político de ver não só o país, como igualmente a sua arte “finalmente decolarem” internacionalmente, no meu dia a dia curatorial e institucional, me sentia imersa num empuxo supostamente “civilizatório” e “desenvolvimentista” em que parecia haver pouco espaço para um criar curatorial que não replicasse o léxico epistêmico e metodológico de um imaginário (por mais vago que fosse) de uma institucionalidade cuja profissionalização segue sendo, por fim, largamente colonialista.
Todavia, contra esse pano de fundo, ainda que pontuais, algumas inflexões puderam se dar. Como exemplo, posso citar a exposição Contrapensamento selvagem (Instituto Itaú Cultural, 2012), cocurada junto a Cayo Honorato, Orlando Maneschy e Paulo Herkenhoff, ocasião em que me senti perto da intensidade pedagógico-criadora da curadoria.
Numa chave em tudo diversa do modelo do cubo branco e seus protocolos estéticos, sociais e políticos, naquela ocasião, dada a dimensão coletiva, altamente específica e significativamente descentralizada do que veio a tornar-se o projeto – e a despeito da estranheza, da tensão e da censura institucional produzidas em seu entorno –, senti-me metodologicamente familiarizada com um processo curatorial conduzido por um processo de criação curatorial coletiva e em aberto.
Todavia, foi especialmente em Estopim e segredo, a exposição de anticonclusão do Programa de Formação e Deformação 2019 da Escola de Artes Visuais do Parque Lage (coordenado junto a Ulisses Carrilho), que tive a certeza de estar experimentando, outra vez em coletividade, um processo curatorial calcado na criação como experiência radicalmente pedagógica. Ou, para ser mais justa: um processo pedagógico calcado na criação como experiência curatorial.
Dada a dimensão deste texto que já vai extrapolando todas as previsões, não destrincharei, aqui, o que foi o longo, complexo e instigante processo do Programa 2019 e de Estopim e segredo. Quero, todavia, sublinhar o que me parece central às reflexões que desde então têm me atravessado com frequência e se ampliado desde minha prática não só como educadora no campo das artes, como também junto ao meu filho, pandemia adentro.
Revisitando minha formação em educação ao longo dos últimos anos e observando as situações em que ela efetivamente pôde convergir com minha prática curatorial, da mesma forma que buscando atentar para as situações nas quais ela foi eclipsada por preconceito ou pela mais absoluta incapacidade curatorial de integrar processos de aprendizagem “mediatizados pelo mundo”, como apontava Paulo Freire, encaro o incontornável fato de que, ainda hoje, minha trajetória na Licenciatura não encontrou um lugar de inteireza em minha prática curatorial.
Com o passar dos anos, entretanto, me sinto cada vez mais certa de que quem tem que abrir espaço, ceder terreno e se transformar não é a faceta pedagógica, senão a curatorial. Em que pesem as críticas que sempre tive à dimensão prescritiva de certa abordagem educadora da arte, devo, à história aqui brevemente relatada, o compromisso de encontrar um lugar efetivo, honesto, produtivo e confortável para a minha formação em Educação Artística não em paralelo à curadoria, mas desde dentro dela.
Ainda que algumas experiências me tenham trazido pistas, hipóteses e horizontes para uma atuação curatorial educadora, confesso não estar convencida de que uma curadoria mediadora ou pedagogicamente responsável seja, por fim, o que estou buscando. Tampouco se trata de ser uma curadora professora, que ensina ou media uma formação curatorial.
Há algo da criação como processo de formação, algo da Escolinha de Arte do Recife, algo de Fayga Ostrower, algo das minhas experiências com professores artistas, algo da educação que construí através da mediação que nos últimos anos me foi oferecida por alunas e alunos diversos, algo da maternagem educadora que, apesar de eu não saber nominar, persiste como ausência e, ao mesmo tempo, como um possível motor para uma curadoria educadora.
Com todos os conflitos que nos perfazem, Licenciatura, sigo em dívida com você.
2022
Clarissa Diniz (Recife, 1985) é curadora, escritora e professora de arte. Graduada em artes plásticas pela UFPE, mestre em história da arte pela UERJ e doutoranda em antropologia pela UFRJ, é atualmente professora da Escola de Artes Visuais do Parque Lage.