Se você já visitou algum espaço expositivo, provavelmente se deparou com o conceito de “cubo branco”. Cunhada pelo crítico de arte Brian O’Doherty, ainda nos anos 1970, período em que a arte contemporânea despontava, a expressão nos remete a uma aparência de neutralidade e assepsia, onde os olhos facilmente encontram foco na obra de arte. Embora essa marca ainda seja predominante em museus e galerias, sua característica hermética apenas reafirma valores estéticos e sociais muito restritos a uma elite “iniciada” pela contemplação. O que acontece, então, quando o artista volta sua pesquisa para aspectos relacionais, transformando a obra de arte em algo que envolve o espaço e as pessoas, tratando-as como sujeitos participantes da construção de sentidos da experiência artística?
Na edição de junho de 2021 do Laboratório de Crítica, o curador Jochen Volz nos convidou a conhecer algumas possibilidades de resposta a essa pergunta. Em uma conversa intitulada “Somos muit+s e outros experimentos”, Jochen apresentou estudos de caso que evidenciam repertórios e estratégias acumulados em contextos como o Instituto Inhotim, a 32ª Bienal de São Paulo, a 57ª Bienal de Veneza e a Pinacoteca de São Paulo.
Se, presencialmente, o curador trabalha para que o público se sinta aberto aos estímulos de cada artista, no ambiente virtual, Jochen também inaugurou a discussão com tentativas de aproximação. Logo no início da conversa, disparou um convite para que os participantes abrissem suas câmeras, em uma tentativa de humanizar a conversa e ativar a sensibilidade do grupo, convocando-nos a perceber nossa diversidade, para assim criarmos diálogos.
Pensar espaços porosos
Em uma de suas primeiras experiências com curadoria, ainda na Alemanha, Jochen conta que se deparou justamente com um elefante branco: uma galeria chamada Portikus cuja fachada – um pórtico neoclássico – já declara que apenas o que acontecerá dentro dela é arte. Mas como tornar um pouco mais poroso esse espaço tão engessado? O primeiro passo de Jochen foi convidar artistas que pudessem trazer elasticidade ao lugar: convidada para essa missão, a dupla formada por Elmgreen e Dragset transformou a arquitetura do espaço expositivo com duas grandes ondas no teto e no chão, envolvendo o público em uma sensação menos sólida e mais experimental. Jochen conta ainda que artistas como Rirkrit Tiravanija e Dominique Gonzalez-Foerster também ocuparam o espaço, oferecendo programações pouco óbvias, como atividades educativas, uma mostra de cinema e noites com bar e DJs.
E quando a arte transborda o espaço expositivo? Ainda sobre suas experiências na Europa, o curador nos contou vivências junto a artistas que propuseram intervenções urbanas com logísticas realizáveis e não realizáveis. Alguns dos convidados, destacou, atingiram inclusive a esfera de utopias para a cidade de Veneza, causando, naquele contexto, transformações de grande impacto midiático nos jornais italianos. Esse foi o caso do artista mexicano Héctor Zamora: ao ficcionalizar passeios de zeppelin por Veneza a partir de um projeto em fotomontagens, ele provocou tamanho saudosismo na população que desencadeou uma movimentação para o retorno dessa tradição romântica da cidade.
Se deixar permear
Já no Brasil, Jochen atuou no Instituto Inhotim em uma proposta completamente nova. Ali, se deparou com uma espécie de “ambiente destino”, onde as pessoas podem se dedicar a planejar uma experiência mais alongada com acervos artísticos e botânicos. Diante desse contexto, Jochen se perguntou: que tipo de vivência com a arte abriga potências mais convidativas para o ambiente Inhotim? Como tornar o público matéria constituinte e ativa da obra de arte? Como o corpo tem sua experiência ampliada pelas noções de “viagem” e “passeio”? Como a ideia de abertura aos acontecimentos, às incertezas e às surpresas pode permanecer com o corpo nessa ativação? Os conceitos desenvolvidos por Jochen e sua equipe se consolidaram em uma expografia que sugere percursos e confusões: ali, a ideia de se perder gera novas antenas e sentidos de orientação e faz ver novos caminhos em Inhotim, provocando uma coreografia em meio a natureza.
As primeiras galerias, conta Jochen, foram construídas visando a contribuição de artistas brasileiros que tinham proximidade com o idealizador do instituto e também de jovens artistas que haviam participado, ao lado do curador, de residências artísticas com característica relacional ao território e comunidades. Trabalhos como o da artista Adriana Varejão, por exemplo, foram desenvolvidos de forma conjunta com curadoria, e também arquitetura e paisagismo. Nesse processo, como descreve Jochen, não se sabe muito bem o que vem primeiro ou o que foi feito por e para quem.
Ainda sobre a experiência no museu, o curador destaca que os mapas e os mobiliários foram pensados de forma a não alterarem de forma significativa o espaço e a liberdade dos visitantes. Segundo ele, a intenção era que a experiência de Inhotim convocasse o público a uma imersão em ambientes que proporcionam uma “fruição total”. Hoje, com os jardins e matas já mais maduros e a consolidação de pesquisas no jardim botânico, a experiência se reinaugura, amplificando reflexões propostas por artistas ativistas ambientais, como é o caso do islandês-dinamarquês Olafur Eliasson.
Jochen também destaca o papel de Inhotim em permitir que nos voltemos e re-olhemos a obra de relevantes artistas brasileiros como Hélio Oiticica. Tendo sua obra exposta de forma permanente no museu, o artista já nos anos 1960 considerava não somente a dimensão da participação, mas também a decisão do público ao se incorporar à obra. O mesmo, lembra Jochen, aconteceu com a obra de Tunga: durante a inauguração de uma galeria dedicada ao artista, a curadoria convidou funcionários de diversas áreas de atuação do museu a realizarem performances, uma grande realização institucional para o curador.
Reinventar existências
Em 2015, Jochen inicia um processo de pesquisas sobre extinção, inundado por reflexões e leituras como o livro “Há mundo por vir?” dos brasileiros Déborah Danowski e Eduardo Viveiros de Castro, em que a filósofa e o antropólogo discutem a necessidade de resgatar cosmologias e estratégias de culturas ancestrais para desarticular o processo do antropoceno e o fim do mundo como conhecemos.
Ao mesmo tempo, Jochen vivia também o início da crise democrática e política no Brasil, contexto que o levou à expressão “Incerteza Viva”, tema da Bienal daquele ano. Voltada à criação de planos de ação para as urgências dos povos do sul global, a equipe curatorial realizou dias de estudo com artistas locais em comunidades no Chile, no Peru, em Gana e no centro-oeste do Brasil – onde são recorrentes os conflitos entre indígenas e grandes monocultores que exploram a terra.
Segundo o curador, alcançar “outros saberes” e o que é de fato essencial em nossas vidas foi o objetivo de grande parte dos artistas envolvidos na construção daquela Bienal: a artista dinamarquesa Rikke Luther, por exemplo, mapeou, naquele contexto, alguns “bens comuns” para a humanidade – tais quais a arte e o fundo dos mares.
Ilustrando outras presenças naquela Bienal, Jochen cita o projeto Vídeo nas Aldeias, com diversos realizadores indígenas na linguagem cinematográfica; a portuguesa Grada Kilomba, que atravessa da literatura para as artes visuais em seu caminho da discussão racial e decolonial; e a ocupação realizada pelo artista Jorge Menna Barreto no restaurante da edificação, trabalhando alimentação e educação em parceria com a agroecologia familiar na grande São Paulo. Apresenta, enfim, um diverso conjunto de trabalhos que atribuiram ao pavilhão modernista da Bienal de São Paulo uma aparência bem mais orgânica.
Coletividade e fabricações do sensível
Concluindo seu relato de experiências, em 2019 Jochen realizou um último projeto antes da pandemia: uma grande investida institucional na Pinacoteca de São Paulo, batizada de “Somos Muit+s: Experimentos Sobre Coletividade”.
Inspirados por pensamentos e práticas de artistas como Hélio Oiticica e Joseph Beuys, segundo os quais todos nós somos artistas, convidados como a cubana Tania Bruguera criaram propostas que envolveram, por exemplo, a criação de uma escola na Pinacoteca.
Outro projeto de grande importância envolveu a criação de umo palco em formato espiral. Construído por Rirkrit Tiravanija, esse palco recebeu um número gigante de pessoas que se organizaram para se manifestar em mais de uma centena de ativações. Uma delas, destacou Jochen, foi feita pelo coletivo negro Legítima Defesa: reunindo artistas de diversas frentes, a ação enfatizou a importância do museu como um espaço democrático e plural, onde a liberdade não deve ser somente simulada.
Em minha análise, esse lugar de criação de muitas e muitos proporciona o que o filósofo francês Jacques Rancière descreve como a partilha do sensível: uma situação em que a política mostra sua dimensão estética, e a arte, por sua vez, mostra sua dimensão política em um plano comum, formando uma comunidade diversa sem determinações prévias sobre quem deve ser visto ou escutado.
Tendo em vista o momento atual, em que o isolamento é uma medida para a segurança de todos e há um nítido agravamento das incertezas sobre o futuro dos espaços que se dedicam a arte e a cultura, iniciativas que tratam a criação artística como um palco catalisador de ideias, agregador de subjetividades e gramáticas diferentes e por vezes discordantes, certamente nos inspiram a pensar como a arte pode contribuir para o debate político – e como o debate político, por sua vez, pode alimentar nossas práticas artísticas daqui em diante.